TV paga, piratas e corsários
A Hungria é um país que tem algumas peculiaridades. Além de ser a terra natal do Cubo Mágico e da caneta esferográfica, é o berço do Magyar. Esse é o nome do idioma local, mas também serve para nomear os habitantes.
O que torna o Magyar tão peculiar? Para começo de conversa, ele não se parece com nenhum outro idioma conhecido, exceto alguns dialetos espalhados no leste europeu. Apesar de utilizar os mesmos caracteres ocidentais, tem acentos em lugares que até Deus duvida. Além do fato de ter catorze vogais, mas a maioria das palavras parecer só ter consoantes.
Não suficiente, por causar estranheza a quase qualquer vivente do planeta, é conhecido pela alcunha de “a língua do diabo”. E antes que você ache que é bullying com os pobres húngaros, saiba que esse apelidinho carinhoso foi dado por eles mesmos.
Entre outras peculiaridades, a Hungria também é conhecida por ser a terra da Pálinka, uma bebida tradicional, com mais de cinco séculos de bons goles. Os húngaros dizem que, além do lado “recreativo” da bebida, a Pálinka também é ótima para curar dor de cabeça, cólica, e, se brincar, até frieira e unha encravada. Um santo remédio.
Com tantas originalidades no currículo, não seria estranho os húngaros procurarem soluções peculiares para problemas prosaicos, como a pirataria de televisão por assinatura.
Lá, como aqui e em qualquer parte do mundo, o setor passa por uma crise aguda, sobretudo depois do crescimento dos serviços de streaming e da chegada da TV aberta digital, que afastou quem assinava o serviço apenas pela qualidade de imagem.
Somado a isso, a melhora da velocidade da internet e a facilidade de acesso a conexões de banda larga despertou o ânimo de empresários de sucesso que trafegam pelo submundo, ou seja, piratas de IPTV (TV por sinal de internet).
Faca nos dentes, gancho nas mãos e um papagaio no ombro, passaram a roubar o sinal das programadoras e vender seus serviços de gatonet via banda larga. Obviamente, por valores que as operadoras oficiais não têm condição de cobrir.
Icem a bujarrona!
Pois bem. A Associação Húngara de Comunicações Via Cabo (MKSZ), cujo nome no idioma local não me atreverei a escrever e, muito menos, a pronunciar (sob pena de invocar algum demônio) teve uma ideia peculiar para virar o jogo.
Nos últimos tempos, a MKSZ denunciou mais de uma centena de operações similares, sem que as autoridades tomassem alguma providência. Talvez tenham tomado alguns copos de Pálinka, mas jamais saberemos. Os piratas continuaram a singrar o oceano dos sinais de TV com tranquilidade.
A solução nada ortodoxa pensada por eles foi combater fogo com fogo. Nomeada como a “Arma de Tecnologia da Informação do Século 21”, nada mais é que combater pirataria com pirataria. Os associados do grupo estão arquitetando um mega ataque DDoS, para abordar, pilhar, saquear e pôr a pique os servidores destes piratas de IPTV.
DDoS, para quem não está familiarizado, é a sigla para Distributed Denial of Service. Cá na terrinha, algo como “ataque distribuído de navegação de serviço”. Resumindo em uma explicação bem perna-de-pau, é sobrecarregar o servidor inimigo com zilhões de acessos, solicitações “fantasma”, ao mesmo tempo.
Na melhor das hipóteses, o servidor fica instável e ridiculamente lento. Tal qual o Pérola Negra durante a calmaria. Na hipótese mais desejada pela MKSZ, o servidor emperra e naufraga, ou melhor, sai do ar. Assim, quem usa seus dobrões para pagar esse serviço “alternativo”, se aborrece e acaba por cancelar suas “assinaturas”, procurando um porto seguro para assistir seus programas de TV, coisa que as operadoras oferecem com um sorriso no rosto. À míngua, os piratas de IPTV acabam morrendo por inanição monetária.
Caminhando pela prancha digital
Nos tempos da velha e boa pirataria naval, isso existiu na figura dos Corsários. Na prática, piratas “autorizados” por reinos, impérios e governos mundo afora para praticar a pirataria à favor de seus contratantes. No caso atual, quem fará o trabalho dos Corsários serão hackers, contratados por um valor satisfatório e dispostos a realizar o trabalho sujo.
Só há um pequeno detalhe nessa estratégia de batalha naval: na Hungria, como em praticamente todo o mundo, ataques DDoS são terminantemente proibidos por lei.
A Associação vem debatendo com os canais de TV, operadoras e, principalmente, advogados a possibilidade de executar este ataque coordenado. Há, também, outra variável, comum em qualquer combate sangrento: sempre acaba sobrando para inocentes que tiveram a má sorte de estar no lugar errado e na hora errada. Aqui não será diferente.
Num mega ataque DDoS, sites que não têm nada a ver com o peixe, mas têm a infelicidade de partilhar o mesmo serviço de hospedagem dos piratas, serão igualmente afetados. A MKSZ tem ciência disso, e ainda deixou uma mensagem ameaçadoras aos provedores responsáveis pelos servidores: “escolham melhor quem vocês hospedarão no futuro”.
Io-ho-ho!
A iniciativa, ao menos por enquanto, parece fadada ao fracasso. A autorização legal para estes ataques criaria um precedente perigoso, tanto na Hungria como nos sete mares, ou melhor, no mundo todo.
Com esta jurisprudência, algo comum na época das grandes navegações poderia ocorrer. Pois que alguns Corsários, mesmo com suas Cartas de Corso rigorosamente em dia, tal qual um Carnê do Baú (do tesouro), se entusiasmaram tanto com o sucesso de suas pilhagens “oficiais” e acabavam se virando contra seus contratantes, transformando-se em legítimos piratas.
Se você assistiu aos filmes da franquia Piratas do Caribe, mais precisamente ao terceiro episódio, No Fim do Mundo, vai entender bem o que é isso. Vira um salve-se quem puder, com todos lutando contra todos. Há chance disso se tornar um caos digital gigantesco, com resultados imprevisíveis. Com consequências bem mais graves que o problema do cambaleante mercado de TV paga.
Imagine, empresas digladiando-se dentro da lei, desferindo ataques DDoS múltiplos e simultâneos, até o último homem, ou melhor, o último bit. Levando um monte de gente inocente de arrasto (outras almas infelizes que compartilham o mesmo servidor) para as profundezas da web.
Aguardemos o que o futuro reserva. Enquanto isso, já deixe separada sua garrafa de rum. Ou de Pálinka.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.