TV via streaming: é pagar pra ver
"Tem muita coisa, mano... muita coisa... - Foto: Levi Stute /Unsplash
Diz o ditado, a vingança é um prato que se come frio.
Talvez nunca saibamos se é lenda ou realidade, mas conta-se que em 1997, um rapaz devolveu com atraso um DVD na gigantesca rede de locadoras Blockbuster. Multa: quarenta e oito dólares.
Esse sujeito era um americano chamado Reed Hastings.
Revoltado com o valor da penalização, jurou vingança, dizendo que iria criar um serviço que iria mudar o jeito das pessoas alugarem filmes. Dessa ideia nasceu uma tal de Netflix.com, onde você alugava DVDs e fitas VHS através de um site, e um motoqueiro (ou o correio) entregava no conforto de seu lar.
A coisa fez relativo sucesso durante a década que se seguiu, incomodou a Blockbuster, mas ainda havia a questão da devolução e do atraso… foi quando uma lampadazinha acendeu ao lado da cabeça de Reed: e se as pessoas não só encomendassem os filmes pela internet, mas também assistissem?
A virada
Hastings correu atrás de financiamentos, comprou todo o equipamento que precisava, e assim nasceu em 2007 o maior serviço de streaming do planeta. Um golpe de misericórdia na outrora imbatível Blockbuster, que atravessava percalços financeiros: das quase oito mil lojas em vinte e seis países, restou apenas uma.
Mas enfim, alguém sabe definir o que é esse streaming? Oi? Alguém? Você aí no fundo, levantou a mão? Não?
Streaming: como se faz?
Se você for procurar num tradutor on-line, vai achar direto como transmissão. Mas esse não é o significado original, que ajuda muito pra entender. Stream em bom português nada mais é do que riacho. Ribeirão, córrego, corguinho como se diz no interior de Goiás. Um fio d’água, sempre escorrendo.
E assim é o funcionamento do streaming… O conteúdo que você escolhe é enviado para você através de um fiapo de dados, armazenado em seu computador, celular, tablet, Smart TV, ou qualquer geringonça criada para este fim.
Terminou de assistir, o pacote se esvai nos céus até você baixar alguma coisa nova. Isso vale para qualquer serviço de streaming de vídeo e também para os de áudio, como Spotify, Deezer e companhia.
Do tamanho do mundo
A Netflix cresceu praticamente sem concorrência nenhuma. De “locadora”, passou a ser também um dos maiores estúdios de cinema e televisão, criando horas e horas de conteúdos originais.
O único rival que tentava morder um pouco de seu prestígio era o Prime Video, amparado pela gigante Amazon, mas ainda assim era impossível fazer frente ao conteúdo diversificado da Netflix e suas produções próprias.
Praticamente todos os grandes estúdios distribuíam seu conteúdo pela plataforma, a única com alcance realmente global.
Isso mexeu seriamente com outra indústria do entretenimento, a da televisão por assinatura, a popular “TV a cabo”. As operadoras, que distribuíam centenas de canais (a grande maioria que você nunca parou pra assistir), geralmente oferecidos junto com algum serviço de internet banda larga, passaram a ter uma altíssima churn rate.
O que é isso? É a taxa de desligamento. Milhares de assinantes passaram a cancelar suas assinaturas de televisão, muitas vezes ficando só com o serviço de internet, justamente para continuar a assistir Netflix. Que além de tudo, permite assistir por um custo imensamente mais barato, e na hora em que deseja, conteúdos oferecidos pelas TVs por assinatura.
É sério. Eu mesmo fiz isso. Contribuí para a crise do setor.
Mas não é mesmo uma boa ideia?
Lembra daquela lampadazinha que acendeu do lado da cabeça do nosso amigo Reed Hastings? Não é que ela resolveu acender outras vezes por aí?
Os mesmos estúdios que eram distribuídos pela Netflix começaram a pensar, “puxa, que legal, nós temos horas e horas de conteúdos nossos e esses caras estão ganhando bem com isso… e se a gente tiver nosso próprio serviço de streaming? Hein? Hein?”
Fora isso, havia um certo ressentimento, já que a empresa de Reed Hastings se lançara ostensivamente como produtora de conteúdo. Suas produções começaram a ser lançadas em cinema, e a disputar prêmios. Inclusive o Oscar.
A lampadazinha acendeu simultaneamente nos executivos da Warner, Viacom, Apple, BBC, Globo, mas principalmente ao lado do par de orelhas mais famoso do universo: Mickey Mouse.
O rato rugiu
Num estalar de dedos digno de Thanos, a Disney retirou seus conteúdos, divididos entre Netflix e Prime, juntou com mais suas trezentas mil propriedades, passou a usar seus estúdios para conteúdos originais e lançou o Disney+.
De quebra, tirou do mercado um grande ativo, a venda direta de vídeo para o consumidor (através de DVDs e outras mídias), concentrando tudo no seu próprio streaming. E quando digo tudo, no caso da Disney é superlativo: Disney, Pixar, Lucasfilm, Fox, Marvel Studios, National Geographic, ESPN, ABC Studios e tudo o mais que o Mickey possa tocar. Um megazord com orelhas de camundongo.
“Veja, Simba. Tudo isso é o nosso reino. Menos aquele cantinho lá, é da Netflix”. Divulgação: Disney
As coisas mudaram rapidamente. Hoje em dia, temos “cada um no seu quadrado”: Netflix, Amazon Prime Video, Disney+, HBO Max (Warner), Discovery Plus, Apple TV+, BBC Select, Paramount+, Globoplay, Star+ (antigo Fox Plus), MUBI, além de muitos e muitos outros, e o PlayPlus que quase ninguém lembra.
O golpe foi sentido pela Netflix, mas de uma maneira diferente do que aconteceu com a Blockbuster.
Graças aos seus conteúdos originais, muita gente passou a assinar as duas plataformas. Prova concreta que a decisão de ser mais do que uma distribuidora estava certa.
Uma ajuda inesperada
A guerra do streaming ganhou mais força por obra e graça da Covid-19. O número de acessos foi impulsionado de maneira nunca imaginada durante os períodos de isolamento social, obrigando a Netflix a reduzir sua largura de banda por alguns dias.
Parte do público ficou sem ter acesso a filmes em HD e 4K, até a Netflix redimensionar a capacidade de seus servidores. Grande parte das concorrentes, que veio depois disso, ficou certamente agradecida, pois puderam ser lançados já esperando o tamanho do tranco que iriam tomar.
São tantas opções…
A pulverização do streaming tem alguns efeitos colaterais: obriga a você assinar as plataformas que sejam proprietárias dos conteúdos (assino quatro destas, de olho em uma quinta), e ainda assim tem saído muito mais em conta do que o pacote de televisão que assinava; e o outro é um efeito temporal.
Com tanta oferta, que remonta aos tempos áureos da “TV a cabo”, fica difícil escolher ao que assistir.
Se você é cinéfilo, vai encontrar coisas boas em todos eles, mais acertadamente entre Netflix, HBO Max, Disney+, Star+ e Paramount.
Se curte documentários e realities dos mais variados tipos, é quase impossível escapar da Discovery Plus.
Séries? Todas, inclusive a Globoplay, no quesito produção nacional, ainda franca favorita.
Infantil? Todos têm conteúdos excelentes, de educativos (sobretudo Discovery Plus) a aventuras e ação (Disney, HBO, Netflix, Prime…).
Super-heróis? Disney (que detém o Marvel Studios), seguida pelo HBO Max (detentora entre outras coisas, do catálogo da DC).
Não é uma tarefa fácil. Havia uma piada (depois imortalizada pelo grupo Porta dos Fundos) que dizia perdermos mais tempo escolhendo o que assistir do que assistindo. Com esta divisão em múltiplas plataformas, a tarefa ficou extremamente mais complicada.
Ainda assim, se sentir saudade do estilo de programação linear da TV por assinatura, assista à plataforma Pluto TV.
De propriedade do grupo Viacom, a Pluto (que não tem nada a ver com o cachorro do Mickey) exibe dezenas de canais, gratuitamente, como um serviço de televisão convencional, mas acessível a todos os sistemas via internet. E tem pra todos os gostos. Digamos, uma versão light e temporalmente linear da Paramount+.
Inclusive o supracitado Porta dos Fundos.
A concorrência é saudável. No auge da pandemia, os grandes estúdios de cinema passaram a fazer seus lançamentos direto pelas plataformas.
O telespectador atualmente é bombardeado por conteúdos originais das mais diversas origens, numa briga por atrações de qualidade que só nivela por cima. Posso estar enganado, mas creio estarmos vivendo a “Era de Ouro” do streaming.
Aí você escolhe. É pagar pra ver. Só precisa definir o quê e quanto.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.