Um Brasil debaixo d'água
Enchente do Rio Cachoeira, em Itabuna, Bahia. Brasil, dezembro de 2021. Reuters/Leonardo Benassatto.
Veio o verão descendo a ladeira e com ele as anunciadas chuvas. Anunciadas também são as tragédias anuais em decorrência da equação chuvas torrenciais e populações em áreas de risco. É possível enumerar essas catástrofes ao longo das décadas.
Se houvesse precipitação dos governos em medir a quantidade de água que vem, protegendo as pessoas possivelmente afetadas, como se precipitam em tomar de assalto o orçamento, talvez o estrago fosse menor.
Cada início de ano me lembra a música do Sérgio Ricardo: Zelão. “Todo o morro entendeu quando Zelão chorou/ninguém riu, ninguém brincou e era carnaval”. Essa bossa, nascida de uma tragédia chuvosa no Rio de Janeiro em 1961, canta as agruras de quem vive de esperar que não seja sua vez.
Perdendo tudo na enchente, até o violão, Zelão diz, sempre a sorrir: “um pobre ajuda outro pobre até melhorar”. Esse verso vai fundo em algo que só a experiência humana pode trazer: a certeza da ajuda dos seus, mesmo que estes não tenham muito a oferecer. Acusa a necessidade de um senso de comunidade para manutenção da sobrevivência.
Mas como nada está tão ruim que não possa piorar, hoje podemos até discutir a quebra, paulatina, desse senso comum. Substituído pela cultura da individualidade e uma métrica cada vez mais selvagem da vida nas grandes cidades: lotadas, violentas e sem emprego.
Mesmo as chuvas vêm mudando. Correram pelo território – nada pequeno – do Brasil, causando estragos em sequência. Incríveis imagens de cidades inteiras debaixo d’água navegaram internet afora. E quando termina de um lado, começa no outro. Atravessam uma Europa dentro do Brasil.
O que se convencionou chamar aquecimento global, causado por ações humanas, não é somente o aumento nos graus centígrados médios, o que por si só já é desastroso. Traz também, na esteira, fenômenos naturais mais extremos.
Ou seja, as chuvas do verão serão mais intensas, bem como as geadas do inverno. O período quente fica mais quente e o frio, mais frio. A própria agricultura sofre com isso, perdendo a referência das estações. Haja transgênico para salvar a safra. Só não salva os índices de câncer, mas aí o problema é dos sócios da indústria farmacêutica.
Não se assuste se o preço do feijão, por exemplo, aumentar ainda mais esse ano, dadas as possibilidades de perdas enormes de safra. E como extinguimos, em nome da “racionalidade”, estoques públicos (saudades Conab) que garantam um mínimo controle de preços, ficamos nas mãos, ou nos pés, da natureza.
Mas sem afobação, nada é pra já, fiquem tranquilos. Não pretendo me prestar a profeta do apocalipse antes da hora. À certeza unânime de todos os olhares, não ouvirão de mim “eu avisei”.
Este artigo foi escrito por Matheus Dias e publicado originalmente em Prensa.li.