Um Enem com a "cara" do governo
Ano após ano, o Exame Nacional do Ensino Médio vem sendo esvaziado. São diversos os problemas, agravados pela pandemia: dificuldade de acesso à escola ou aos recursos remotos de estudo, consequente evasão escolar, falta de perspectivas sobre emprego numa economia cambaleante...
Mas, sem dúvida, o desmonte efetuado pelo atual governo federal em relação ao Ministério da Educação, especialmente do próprio Enem, está minando a confiança no processo avaliativo.
Não é algo simples ou trivial. O boicote governamental de 2019 pra cá envolve a censura de temas e a pressão sobre os profissionais responsáveis pela operacionalização do exame nacional.
Negacionismo no Enem?
Imagem/reprodução: Agência O Globo
O atual presidente é um dos protagonistas do discurso de que os governos militares não praticaram uma ditadura no Brasil, e que em 1964, no 1o de abril, uma revolução teria acontecido, e não um golpe de estado.
Por mais que esse discurso seja problemático, é preciso reiterar que, enquanto sujeito livre numa democracia, o presidente pode ter a opinião que quiser. O problema é quando isso é instrumentalizado no aparelho do Estado
Vejamos o caso do Enem. O exame foi, nos últimos anos, o mais importante mecanismo de acesso às universidades e faculdades brasileiras. Em caráter independente, sua formulação esteve nas mãos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (o INEP).
Por anos, seu banco de dados, alimentado por profissionais da educação de todo o território nacional, deu cara às questões do exame, que chamavam a atenção pela contextualização e necessidade de um conhecimento significativo por parte dos alunos.
Contudo, em 2019, atendendo aos anseios do presidente, uma comissão de censura foi instaurada para barrar questões tidas como “ideológicas”. Da fofa personagem Mafalda do argentino Quino, as charges da Laerte, ou mesmo questões ligadas ao feminismo e aos Direitos Humanos, foram barradas no exame daquele ano.
Nos anos seguintes, a Ditadura Militar tornou-se objeto de atenção dos censores governamentais. Expressamente, em 2021, o presidente teria solicitado a substituição do termo “golpe” por “revolução” para tratar do período em que militares governaram num Estado autoritário e repressivo, entre os anos de 1964 e 1985.
Os servidores do Inep tentaram fazer oposição à interferência. Um parecer formal contra a censura foi feito em 2019. Nesse ano, uma demissão em massa demonstrou a insatisfação dos profissionais diante das ingerências do governo. Nada mudou.
Uma comissão pela verdade
Imagem/reprodução: Agência Brasil
Muitas pessoas se sentem desconfortáveis com o passado. Eu mesmo, prefiro esquecer alguns momentos embaraçosos da minha juventude, ainda que vez ou outra eles reapareçam como fantasmas a me assombrar antes de dormir.
Em se tratando de lembranças pessoais, terapia e perdão geralmente são mecanismos imprescindíveis para nossa saúde mental.
Contudo, quando o passado em questão é nacional, e tem a ver com eventos traumáticos de um país, só uma Comissão da Verdade resolve. Foi assim no Chile, foi assim na Alemanha, e também foi assim no Brasil. Cada país, obviamente, lidou de sua forma a respeito dos crimes e punições necessárias.
Em nosso país, a Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011, sendo instituída de fato em 16 de maio de 2012. Sua finalidade foi a de apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Por dois anos, a comissão trabalhou em conjunto com pesquisadores e especialistas, ouvindo depoimentos e realizando sessões públicas.
Em 10 de dezembro de 2014, a CNV entregou o relatório final. Sua conclusão foi a de que, como política de Estado durante a Ditadura Militar, foram realizadas detenções ilegais, tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos e ocultação de cadáveres.
Com um saldo de 434 mortes e desaparecimentos e 377 agentes públicos envolvidos nos casos, a CNV daria 29 recomendações à sociedade brasileira.
Uma delas é sintomática: as Forças Armadas do Brasil teriam de reconhecer sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a Ditadura.
Isso não ocorreu. Pelo contrário: os militares engrossaram as fileiras do negacionismo que desembocou na ascensão do conservadorismo de extrema direita.
É “golpe” ou “revolução”?
O negacionismo conseguiu asas potentes para voar alto no mundo conectado. O Whatsapp e o Telegram, com seus disparos e milhares de grupos, tornou o negacionismo um fenômeno fora da cabeça dos conspiracionistas de plantão. Uma espécie de pandemia à parte.
De volta aos debates populares, uma suposta “revolução de 1964” teria sido responsável pela salvação do país diante de uma iminente ameaça comunista, personificada no presidente João Goulart (presidente constitucional naquele último ano democrático).
Entre conspirações soviéticas, cubanas ou mesmo do serviço secreto tcheco, segundo a narrativa negacionista, os militares teriam feito uma “revolução”, ou “contrarrevolução”, para impedir uma outra, comunista.
Enfim, não vamos nos alongar mais sobre isso. Num esforço pedagógico, é preferível que façamos a delimitação de dois conceitos.
O que pode ser entendido como revolução?
De acordo com o historiador Hector Bruit, “revolução” é um fenômeno político-social de mudança radical na estrutura social. É, também, um confronto entre a classe que detém o poder do Estado e as classes que se acham excluídas desse poder. Assim, estamos tratando de algo que transforma radicalmente as estruturas de uma sociedade.
O que é um golpe?
Uma tomada abrupta do poder por um grupo dominante, excluindo outros grupos, mantendo a estrutura social.
Num golpe, o aparelho repressivo é amplamente utilizado contra a população trabalhadora, com o fim de manter a hegemonia da classe dominante, que se assenta na estrutura social inalterada.
Os golpes militares na América Latina foram fundamentados em uma filosofia supostamente contrarrevolucionária, pregando a tomada do poder por grupos de direita que procuravam impedir uma nebulosa revolução socialista.
No entanto, nem no Brasil, nem na Argentina, nem no Uruguai, por exemplo, havia uma revolução deste tipo em andamento. Os golpes militares foram desfechados, de fato, contra a democracia.
O que houve no 1º de Abril de 1964 foi um golpe (tomada abrupta do poder) de uma classe dominante (militar, com apoio da burguesia) que utilizou amplamente de seu aparato repressivo contra os trabalhadores, mantendo a estrutura social inalterada.
O Enem tem que ter qual cara?
Apesar de a resposta ser extremamente óbvia, aprendi nos últimos anos que mesmo o óbvio precisa ser dito, sempre, o tempo todo.
O Enem não deve ter cara de governo algum, porque ele não é uma política de governo. Ele é um instrumento educacional, que independe da gestão que estiver ocupando o cargo federal, cuja função é avaliar a aprendizagem dos alunos do ensino médio.
Quando a poeira negacionista baixar, e todos puderem ver as consequências de aparelhar este exame, será mais fácil (talvez) compreender que educação precisa contemplar o amplo debate democrático, e não censurar ideologias contrárias a si.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.