Um exercício de empatia
Aquela velha historia de calçar o sapato dos outros. Quanto tempo voce aguentaria andando num sapato desses? / Foto por @chrispic no Unsplash
Uma das maiores ferramentas de Design é a empatia. Nada mais do que entender a perspectiva do outro, entender um problema de acordo com esse ponto de vista além do seu e, a partir disso, agir com o foco em solucionar a questão da melhor maneira possível para seu público.
Vamos então fazer um exercicio prático. Imagine comigo:
Hoje é mais uma segunda-feira.
Clima um pouco frio. Faz só -12c. A sensação é de -16c. Bem ok para um inverno de país do hemisfério norte. Você está trabalhando mais um dia num lugar novo, onde chegou não faz muito tempo, desde que teve que fugir com pressa de seu país.
Seu emprego? O de sempre. Falar com pessoas, convencê-los e vender a ideia de que seu produto é bom. Uma revista de uns 20 e poucos reais, que muita gente parece fingir nem ver.
E neva. Neva muito.
E ainda assim você continua tentando falar com as pessoas apressadas que vem e vão na frente de um supermercado. Eu disse falar? Quis dizer gesticular. Mímica. Afinal, você não fala a língua local, nem mesmo inglês. Então faz o que pode para tentar chamar a atenção de quem passa pela rua que, costumeiramente, mal olha para quem está ao seu lado.
Sabe como é, né? Todos sabem que as chances de você fazer parte de um grande esquema de arrecadação ilícita de dinheiro na rua é enorme. Afinal, todos já ouviram falar da "grande organização que espalha pessoas na rua para pedir dinheiro" ou vender revistas, mesmo que debaixo de temperaturas nada amenas.
Ao tentar se comunicar com mais um possível cliente, você é rejeitado mais uma vez. Outra oportunidade de levar a refeição do dia para casa perdida.
Mas, dessa vez, algo diferente acontece. Depois de um tempo o cliente volta e tenta falar com você. Pergunta algo em inglês, e você tenta explicar que não vai dar muito certo. Por sorte, ambos compreendem uma única palavra que faz tudo mudar: comida.
Ao apontar para o mercado, o cliente entende que talvez você aceite outros pagamentos, se não pelo produto, pelo seu esforço em tentar vender. Afinal, meritocracia, não é mesmo? O que vale é se esforçar.
E assim, com gestos e boa vontade de ambos os lados, você e seu cliente vão pegando umas coisinhas no mercado. Frango, para o almoço. Alguns pães. Shampoo? E então mais uma palavra em comum surge: bebês. E um número. Dois.
E, com sucesso, você explica a seu cliente que além de você, tem duas crianças por aqui. E tenta negociar mais um pouco, conquistando aí alguns chocolates para os pequenos. Muitos na verdade. Barras enormes.
Você assume o risco de forçar os limites com seu cliente, mas assim é a vida não é? Correr riscos e pensar grande. Tudo é valido na esperança de voltar para casa e saber que ao menos alguma alegria você vai proporcionar aos seus filhos.
E então, ao passarem pelo caixa juntos, numa mistura de alegria e surpresa, sorrisos inúmeros de gratidão são trocados. Um abraço de despedida sela a negociação. E seu cliente se vai.
Você também. O dia já rendeu e há assuntos mais importantes a serem tratados em casa agora. E aqui todo mundo valoriza seu tempo com a família. Todos entendem e respeitam seu tempo para viver a vida pessoal.
E esse é o fim de nosso exercício de imaginação.
E se fosse real?
Espero que por alguns minutos você tenha se sentido na pele de alguém tentando viver numa situação em que a vida inteira parece se colocar como uma parede contra sua existência.
Refugiados sírios, iraquianos, nigerianos, senegaleses em muitos países da Europa. Venezuelanos, colombianos, angolanos, congoleses no Brasil.
Pessoas como nosso personagem da história, que sim, são reais.
Pessoas como Moise Kabagambe, num dos mais recentes casos no Brasil, que empurram nossos limites do absurdo e da convivência com o próximo para patamares nunca imaginados.
Pessoas submetidas a toda sorte de obstáculos, de tempestades de neve na rua a milicianos. Simplesmente por tentarem reconstruir sua vida num outro lugar, distante da família, amigos, de sua história e cultura. Muitas vezes lidando com não exatamente o melhor que temos para dar enquanto humanos.
Te convido por final a mais um exercício: se o refugiado fosse você, quais seriam seus limites? Quais seriam suas habilidades para se misturar e sobreviver numa nova sociedade e cultura? Como gostaria de ser tratado? É assim que você tem tratado os tantos que vêm e vão todos os dias?
Num mundo onde perdemos cada vez mais tempo discutindo quão disruptivos são as novas tecnologias, e quão relevante são os NFTs, ainda precisamos - e muito - inovar nas nossas relaçoes humanas e vida em sociedade, além de saber priorizar os assuntos que são realmente urgentes de serem discutidos.
Que tal repensar isso, sua bolha e seus privilégios e começar hoje a fazer algo diferente se achar que faz sentido?
Bora?
https://www.acnur.org/portugues/ajude-os-refugiados/ - Mundo
https://caritas.org.br/colabore - Brasil
https://www.refugiadosnobrasil.org/ - Brasil
https://www.migrante.org.br/colabore/ - DF e RR
https://www.abracocultural.com.br/participe/ - SP e RJ
https://missaonspaz.org/seja-voluntario/ - SP
https://bibliaspa.org/all-services/faca-sua-doacao/ - SP
Este artigo foi escrito por Flavio Lee Budoia e publicado originalmente em Prensa.li.