Um país à deriva
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Foi no final dos anos sessenta que nasci em alguma cidade interiorana deste país à deriva. Sim: nasci em um país à deriva e ele sempre esteve assim: à deriva.
Quando nasci não veio nenhum anjo torto para me dizer isso ou aquilo. Aquele era o tempo das bandas de rock sessentistas e logo depois, mulheres queimariam sutiãs e as ruas virariam barricadas em Paris, Ohio e em outros lugares menos estrelados.
Mas isso não chegaria no meu país à deriva de forma natural. Afinal, em um país à deriva como o meu as coisas demoram para ser assimiladas.
Por aqui, os tais ‘ventos civilizatórios’ sempre custaram (custam) muito a chegar.
Imagine este meu país à deriva como um grande navio, atrasado, pesadão e vagaroso.
Um Titanic latino-americano que tenta parecer modernoso.
Somente tenta…
Titanic caquético
Imagine que em seu convés alguns ainda acham que tudo está bem, OK (como diz o ‘capitão’ do monstrengo) mesmo que lá embaixo, nas funduras do porão, se ouçam vozes...
Vozes que clamam por justiça social, que gritam de tristeza porque perderam entes queridos em razão de um vírus que foi chamado de ‘gripezinha’...
Vozes que tentam se fazer ouvir por razões tão diversas quanto assassinatos nos morros e favelas por quem deveria protegê-los ou sob os escombros e lamas causados pelas chuvas recentes.
Canalhas desde sempre
Mas, não: a ‘culpa’ não é das necessárias chuvas de verão. A ‘culpa’ sempre foi dos canalhas que lá em cima, nunca ouviram o apelo dos lá debaixo.
O fato é que neste país à deriva, as pessoas do convés não querem escutar o que o povo do porão tem gritado loucamente desde 1500...
E para eles também não importa se o navio já está fazendo água lá no casco, porque eles, lá em cima, só sentem um ventinho bom sobre suas caras canalhas.
E o que eles enxergam, mesmo estando lá em cima, é limitado, primeiro, porque as visões deles são humanamente limitadas.
Do alto desta mesquinhez congênita eles veem um horizonte que julgam sempre belo e azul. Ora, mas para eles, os canalhas, sempre foi assim mesmo!
Dito isto, vocês entendem que a razão do meu país estar assim, à deriva, é algo bem mais profundo do que os abismos oceânicos mais fundos?
Pois foi neste país à deriva que nasci. E estou do lado destes que, no porão, não conseguem se fazer ouvir pelos lá de cima.
Temos uma criatura mitificada que se acha ‘ungida’, temos uma gente ignóbil e ignorante que se diz ‘cristã’ e aprova genocídios, armas, misoginias e outras canalhices.
E assim, meu pais à deriva continua navegando... Não se sabe para onde...
Este artigo foi escrito por Ankara Faulkner e publicado originalmente em Prensa.li.