Um personagem nada elementar
O médico escocês Arthur Conan Doyle era um escritor despretensioso, acostumado a criar aventuras com muita ação para jornais e revistas da Inglaterra vitoriana, enquanto tentava se estabelecer como um médico respeitável.
O fato é que as coisas não caminhavam muito bem nem na medicina, nem na literatura, e ele ficava cada vez mais frustrado. Então, em dezembro de 1877, publicou uma historinha policial no Beeton 's Christmas Annual, intitulada Um Estudo em Vermelho.
Aquele conto apresentava dois personagens: um médico, claramente baseado em si próprio, aliando-se quase acidentalmente a um detetive consultor. Uma figura de hábitos, digamos, peculiares. Capaz de deduzir a vida pregressa de uma pessoa pela simples observação de uma mancha de sopa na manga do paletó.
Nasciam ali o Dr. John Watson e é claro, Sherlock Holmes. As histórias de detetives nunca mais seriam as mesmas.
Os pequenos detalhes são sempre os mais importantes
Dali até 1927, Arthur Conan Doyle escreveu quatro romances e cinquenta e seis contos com os personagens. Sherlock Holmes se transformou em uma entidade tão poderosa que por mais que o autor não quisesse mais escrever suas histórias, o público não permitia. Acreditem, não foi por falta de tentativa.
A dupla de personagens transcende as páginas de tal modo, que muita gente envia cartas para a Rua Baker, em Londres, endereço fictício do detetive, pedindo ajuda para solucionar casos. Detalhe: o número 221B, sempre estampado nos livros, não existia na vida real. Não existia, porque atualmente existe e abriga, é claro, o Museu Sherlock Holmes.
Essa transcendência fez de Holmes um dos primeiros personagens transmídia: seus contos, que passaram a ser publicados pela revista britânica Strand, logo foram adaptados ao teatro, depois ao rádio, cinema, e é claro, à televisão. O detalhe é que continuam sendo adaptados até o dia de hoje, quase sempre com sucesso.
O mundo está cheio de coisas óbvias que ninguém jamais observa
Um dado estatístico, bem ao estilo do detetive: entre cinema e televisão, houveram até o momento nada menos que 228 adaptações do personagem, sendo que a primeira delas foi o curta-metragem mudo, no ano de 1900, intitulado Sherlock Holmes Baffled.
Mas as coisas ficaram sérias mesmo a partir da cinessérie de filmes estrelados pelo ator Basil Rathbone, produzidos inicialmente pela 20th Century Fox e depois pela Universal. No total, catorze produções, entre 1939 e 1946, sempre ao lado do ator Nigel Bruce, intérprete do Dr. Watson.
Cabe dizer que foi nessa série, e não nos livros, que surgiu o visual da dupla perpetrado no imaginário popular, e não nos livros. Aliás, há uma divertida brincadeira em relação a este icônico visual, no episódio Um Escândalo na Belgrávia, da série Sherlock, da década de 2010, mas isso fica pra daqui a pouco.
Assim como o Conan Doyle, Rathbone também teve problemas com o personagem. Chegou a um momento em que era cumprimentado na rua como “Sherlock”, e não pelo seu nome. Com essa superexposição, ele não conseguia mais nenhum outro papel, fosse no cinema ou no teatro. Demorou muito para que conseguisse fazer as pazes com o personagem.
Para uma mente ampla, nada é pequeno
Quatro décadas depois, em 1984, o canal inglês ITV estreou a série As Aventuras de Sherlock Holmes. No total, foram nove temporadas (a série foi cancelada apenas em 1994), com quarenta e um episódios de tamanhos variados. Com Jeremy Brett e David Burke nos papéis de Holmes e Watson, esta série produzida pela Granada Television alcançou o mundo (foi exibida também no Brasil) e arrebatou um sem número de prêmios. É considerada pela crítica uma das melhores adaptações das histórias do detetive, e é reprisada em diversos países até os dias atuais.
Já imaginou Sherlock Holmes nas mãos de Steven Spielberg? Bem, isso aconteceu logo depois da estréia da série da ITV… em 1985, o diretor produziu O Enigma da Pirâmide, uma superprodução trazendo o detetive e seu ajudante nos tempos do colégio. Exato, um Sherlock adolescente, em sua primeira investigação. Não fez muito sucesso, mas é um filme que merece ser visto ou pelo menos revisto.
Uma vez eliminado o impossível, o que restar, não importa o quão improvável, deve ser a verdade
Ok, e se contarmos que Holmes também passou pelas mãos brasileiríssimas de… Jô Soares? Em O Xangô de Baker Street, baseado no livro homônimo do eterno gordo, o ator português Joaquim de Almeida faz um excelente Sherlock (bem inspirado no visual dos filmes de Rathbone), às voltas com um mistério aterrador na corte de Dom Pedro II. De quebra, o detetive em terras brasileiras descobre os efeitos colaterais da feijoada e o Dr. Watson (interpretado por Anthony O'Donnell) cunha pela primeira vez na literatura policial o termo serial killer, de um modo inesperado e hilário.
Apesar de nunca ter saído da mídia, as aventuras de Holmes eram procuradas mais por conhecedores do personagem que pelo público geral. Até que em 2009 o Homem de Ferro Robert Downey Jr. estrelou Sherlock Holmes, ao lado de Jude Law no papel de Watson. O filme foi sucesso de bilheteria e novamente colocou o detetive no topo.
Apesar de muita gente torcer o nariz, a produção dirigida por Guy Ritchie explorou com sucesso alguns detalhes dos livros, como a habilidade em luta e o raciocínio fenomenal do personagem. Downey Jr. ainda mostrou a faceta inconveniente e irritante de Holmes, e sua notória incapacidade de conviver decentemente com pessoas “normais”.
O filme teve uma sequência memorável em 2011, intitulada O Jogo de Sombras, onde a dupla enfrenta ninguém menos que seu arqui-inimigo, o Professor Moriarty, interpretado com maestria por Jared Harris. A história mescla alguns contos de Conan Doyle, entre eles O Problema Final, com um resultado bastante interessante. Não contaremos mais pra não estragar.
Um detalhezinho a ressaltar nessa versão é a inspirada trilha sonora composta do Hans Zimmer, que prova que violinos podem ser utilizados – e muito bem utilizados – para todo tipo de cena, desde momentos introspectivos até cenas de pura ação.
Não há nada mais enganador que um fato óbvio
Mas lembram-se quando falamos sobre a “faceta inconveniente e irritante” do personagem? Bem na época em que o filme de Guy Ritchie ganhou o público, a TV inglesa trouxe novamente o detetive à ação, na série Sherlock. E aqui, as características do personagem foram evidenciadas como nunca.
Interpretado por Benedict Cumberbatch (um craque em personagens socialmente complexos, vide suas representações de Alan Turing em O Jogo da Imitação, Khan em Star Trek Into Darkness e mesmo o dragão Smaug em O Hobbit), o Sherlock Holmes desta versão vive na Londres atual, às voltas com todos os recursos tecnológicos possíveis e imagináveis. E Cumberbatch consegue elevar todas as manias e características do personagem à enésima potência.
As adaptações dos textos para os dias e costumes de hoje são excelentes, e o Dr. Watson nesta versão, interpretado pelo hobbit Martin Freeman, também dá um show, tentando contrabalançar com emoção e sensatez os arroubos de lógica e extravagância do detetive.
Há outros personagens a destacar nesta adaptação: primeiro, o vilão Moriarty, que apesar de parecer insignificante, consegue ser perturbador de um modo bem mais desagradável que em outras adaptações; Mycroft Holmes, o irmão mais velho (e ainda mais inteligente) de Sherlock. E claro, Irene Adler, a mulher, aqui numa caracterização surpreendente.
Há um episódio brilhante que precisa ser mencionado: A Noiva Abominável, ambientado tanto nos dias atuais quanto nos dias da obra original. E é aqui que se vê a melhor adaptação dos detalhes criados por Arthur Conan Doyle em seus livros. A caracterização dos personagens e do ambiente parecem saltar das páginas dos livros para a tela.
Falando em páginas, Sherlock foi adaptada para uma mídia inédita: mangás! Sim, os quadrinhos japoneses. Com uma arte bastante fiel, mas mantendo todas as características de um bom mangá, alguns episódios foram transpostos com excelente qualidade para o estilo, e pelo menos quatro volumes foram publicados no Brasil.
Produzida e exibida pela BBC, sob a batuta de Steven Moffat e Mark Gatiss, na época mesma dupla criativa de outro grande sucesso da emissora, Doctor Who, a série teve quinze episódios de uma hora e meia cada, entre 2010 e 2017, e nunca foi oficialmente cancelada. Há uma possibilidade da série retornar, caso as agendas de elenco e equipe permitam. Mas o mistério persiste.
O sentimento é um defeito químico encontrado no lado perdedor
Há muitas outras adaptações a se destacar, como a curiosa série americana Elementary, de 2011, que adapta as aventuras também para os tempos atuais, mas em Nova York. Holmes é interpretado por Jonny Lee Miller e a Dra. Watson (sim, aqui Watson é uma mulher) pela atriz Lucy Liu.
Mas pra fechar, vamos com uma obra pouco conhecida, mas que merece muito ser vista: Mr. Holmes, ou por aqui Sr. Sherlock Holmes, de 2015, baseado em um livro escrito por Mitch Cullin.
Interpretado por Ian McKellen (mais conhecido como Gandalf, Magneto e dezenas de personagens clássicos), o detetive acaba de completar noventa anos. Watson faleceu há muito tempo.
Holmes precisa investigar um último caso, mas defronta-se com um inimigo implacável, contra o qual pouco pode fazer: o mal de Alzheimer. Imagine o que é ter o cérebro mais poderoso do planeta, derretendo aos poucos.
McKellen entrega um Sherlock nonagenário com todas as idiossincrasias que se espera, em um roteiro emocionante que reflete a luta gigantesca do detetive contra suas próprias limitações, frustrado porque sabe que está perdendo sua qualidade mais preciosa. E o resultado é simplesmente genial.
Você vê, mas não observa. A diferença é clara
Recentemente, tivemos a estreia nas telas de mais uma integrante da família: Enola Holmes, em um filme produzido pela Netflix, tendo por base o livro escrito por Nancy Springer.
A irmã caçula dos Holmes se vê às voltas com o desaparecimento da mãe e uma investigação política, à revelia dos irmãos mais velhos. Fez bastante sucesso já em seu lançamento e uma sequência vem sendo anunciada.
Falando em sequência, era previsto que a franquia com Robert Downey Jr. e Jude Law recebesse uma terceira parte em dezembro de 2021… mas a pandemia colocou a produção em recesso, e até o momento não há novidades sobre o andamento deste terceiro filme.
Para encerrar, dois dados nada elementares: primeiro, nos livros, a frase “elementar, meu caro Watson” jamais foi escrita, ou dita; segundo uma pesquisa da revista Superinteressante, ela surgiu numa referência feita ao personagem no livro Psmith, Journalist, de P. G. Wodehouse, em 1915, e acabou sendo atribuída a Sherlock.
E o segundo, mas não menos importante: Sir Arthur Conan Doyle não tirou Holmes totalmente de sua imaginação. Ele se inspirou em um de seus professores de medicina, um tal Joseph Bell. A descrição física é praticamente idêntica à do detetive, e o Dr. Bell conseguia deduzir a vida de seus pacientes observando seu jeito de andar, forma de como movia as mãos, pequenos detalhes em sotaques… coisa não muito diferente de outro personagem também inspirado por Sherlock Holmes: Dr. House.
E, pra fechar: todos os intertítulos desta reportagem são frases clássicas de Sherlock Holmes. Nada mais elementar.
Foto: Felix Hanspach / Unsplash
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.