Um réquiem para Genivaldo
Transformada numa câmara de gás, a viatura policial, onde o rapaz foi jogado, também se tornou seu túmulo.
Uma execução à luz do dia, numa quarta-feira, dia 25 de maio. A cena lamentável estava cercada de testemunhas que filmavam e eram ameaçadas, caso se aproximassem.
Este é mais um caso, numa longa esteira de outros, que a linha de montagem da indústria da violência policial produz no país, e que se enquadram no problema crônico que atinge a sociedade, principalmente as populações periféricas: a repressão policial desproporcional e, em inúmeras vezes, fatal.
Câmaras de gás numa (ex-)Democracia
As comparações com o genocídio nazista nos campos de concentração, durante a 2a Guerra Mundial, logo apareceram. Diversos posts nas mídias sociais relembraram a tática dos alemães, sob o comando de Adolf Hitler, de execução e limpeza racial da primeira metade do século XX.
O horror das câmaras de gás vitimou milhões de judeus, ciganos, gays, lésbicas, inimigos políticos e demais indivíduos considerados indesejados pelos nazistas.
Dos sobreviventes desse genocídio, temos relatos densos de como o mal, banalizado, havia se tornado uma regra, uma política de estado. A história de Edith Eva Eger é um exemplo disso. Separada dos pais ainda na saída dos vagões do trem que os levou ao campo de Auschwitz, ela mal sabia que, ao cruzar à direita, estaria escapando de um destino que levaria seus pais à morte: a câmara de gás.
No Brasil, sem possibilidade de defesa, aquele homem foi trancafiado para a morte, sendo asfixiado com os gases ali jogados pelos policiais.
Como já falei em textos passados, a história não é cíclica, e só se repete como farsa. Estamos diante de algo a mais: a repressão das forças policiais, em plena democracia, de populações periféricas. Este é um processo longo, ininterrupto e cruel que acompanha nossa história.
Do período colonial, passando pelo Brasil monárquico, até hoje, temos nosso holocausto particular. Indígenas, negros, pobres e marginalizados, são todos os alvos preferidos da suposta ação de defesa policial que, ao fim e ao cabo, acaba atuando como o braço armado da “limpeza social” dos indesejáveis.
A promulgação da lei Áurea, comemorada por uns e outros no dia 13 deste mês, aparece como um marco não de liberdade, mas de continuidade desse processo.
Outro caso isolado?
Um dia antes, 24 de maio, ocorreu no Rio de Janeiro, na Vila Cruzeiro, zona norte, uma das ações mais letais da polícia carioca. A operação conjunta entre Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) e PRF (Polícia Rodoviária Federal) matou 26 pessoas. Na história, apenas a ação na favela do Jacarezinho, ano passado, foi superior, com 28 óbitos.
Os relatos dos moradores evidenciam a truculência e a falta de preparo dos agentes públicos envolvidos. Com invasão de casas e violência contra pessoas que não tinham envolvimento com o crime organizado, os policiais agrediram física e verbalmente inocentes.
De acordo com a polícia, o objetivo da operação era prender uma quadrilha de roubos de carros e cargas. Contudo, a reboque, ceifaram a vida de João Carlos Arruda Ferreira, 16 anos, estudante, Douglas Costa Inácio Donato, 23 anos, ex-militar da marinha, e Ricardo José da Cruz, 27 anos, mototaxista.
Seus corpos foram encontrados num matagal na Vila Cruzeiro. Três famílias, destruídas.
Desde que assumiu o governo do Estado do Rio, em maio do ano passado, Cláudio Castro teve seu mandato permeado por ações policiais que resultaram em 182 mortes em 39 chacinas, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado e do Geni (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos), grupo de estudos sobre a violência da UFF (Universidade Federal Fluminense).
A guerra ao crime, retroalimentada pelo discurso de ódio e pela máxima de “bandido bom é bandido morto”, ano após ano, demonstra que sua eficácia, de fato, está em tirar a vida de pessoas inocentes.
Não são casos isolados. É parte do plano, e os dados nos mostram isso.
Um réquiem para Genivaldo
Na 3a linha do Boletim de Ocorrência, redigido pelos policiais envolvidos na operação, a infração que motivou a abordagem a Genivaldo foi “andar sem capacete”. Pela lei, conduzir moto sem a utilização deste instrumento de proteção é infração gravíssima, com multa no valor de R$ 293,47, sete pontos e suspensão da CNH.
Para aquele homem, naquele dia, contudo, o veredito foi a morte.
Justiça por Genivaldo.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.