Um século de vacinas
Há quem diga que a história se repete. Inúmeras frases foram formuladas sobre isso. A mais famosa diz que depois de acontecer como tragédia, ela se repete como farsa.
Com isso, não pretende dizer que se dará uma repetição exata do passado, impossível, mas que o passado é usado para manutenção, ou reprodução, de padrões sociais.
Um acontecimento, de mais de um século atrás, ecoa nas frestas do cotidiano, reverberando símbolos e tragédias. A Revolta da Vacina*, em 1904 no centro do Rio de Janeiro, encontra paralelos por toda a história que descortinou de então.
Poderíamos começar pelo óbvio, o terror gerado nas pessoas pela vacina – à época um trambolho realmente assustador – num tempo que “ir ao hospital” tinha conotação fúnebre. Pobre geralmente não volta.
A farsa hoje são verdadeiras indústrias da mentira, que potencializam o medo de boa parte da população, por um projeto sem nenhum brio humano.
Daremos, no entanto, um passo atrás.
O contexto
O Rio era um parque de contaminações de diversas doenças, há cem anos. Por medo da varíola, muitos navios estrangeiros não deixavam a tripulação descer, mantendo-se no mar.
Um inchaço demográfico na virada do século desestruturou a malha urbana que, há pouco tempo, era a maior escravista do mundo. A população quase dobra em poucos anos.
Pelo menos metade das pessoas que moram e circulam na capital, nessa época, eram analfabetas. “Uma ilha de alfabetizados num mar de analfabetos”, diria o historiador José Murilo de Carvalho.
Não havia sistema de esgoto para os cortiços, onde moravam pobres migrantes e imigrantes, ex e descendentes de escravizados. Explodem, os preços e a violência.
“Saneadas” as contas públicas, após severa austeridade, o governo de Campos Sales (1898-1902) - filho de grandes proprietários cafeicultores - finalmente abria o caminho para a modernidade e bons negócios exportadores.
O próximo presidente, Rodrigues Alves (1902-1906), procuraria também deixar sua marca.
As grandes reformas urbanas, gerenciadas pelo prefeito Pereira Passos, visavam “adequar” a capital da República ao circuito de grandes metrópoles mundiais, principalmente Paris. Escoar melhor o cais do porto, além de sanear a cidade.
Como resultado, transformou o centro em centro. Comercial, financeiro, político. Promoveu o início da favelização - removendo cortiços inteiros num grande “bota-abaixo” sem contrapartida - e partiu a cidade ao meio. Nas décadas seguintes, os ricos vão para a Zona Sul e os pobres para a Zona Norte/Baixada.
O projeto era uma capital federal “revitalizada”, após o que ficou conhecido como a “Regeneração”. Não éramos mais uma monarquia, novos tempos pediam novas fachadas.
Nas novas avenidas, amplas e iluminadas eletricamente, há o regramento da sociabilidade tida como aceitável. Não são permitidas vacas, cães, vadios, mendigos.
Chega-se a discutir a possibilidade de circularem apenas cidadãos considerados bem-vestidos. O grande sonho do proprietário citadino era passear pelas virgens ruas, todos de terno e cumprimentos em francês.
A escalada da tensão
No bojo de tantas transformações, a vacinação, ferramenta descoberta e usada na Europa poucas décadas antes, entra como política pública. Sua aplicação, no entanto, segue o padrão do relacionamento histórico de qualquer institucionalidade brasileira para com os seus sem-posses: truculentíssima.
Um aparato do Estado acostumado a lidar com negros e pobres na base da chibata, literalmente, não poderia pensar a vacinação de outra forma. Vide as reformas. O objetivo é resolver esse “problema” o mais rápido possível para o bom trânsito dos investimentos.
Mesmo importantes figuras, como Rui Barbosa, mostravam-se inseguros quanto à imunização.
Com os ânimos à flor da pele, uma mulher morreu no mês de julho, pouco após vacinar. O médico-legista atestou a morte por infecção generalizada em virtude do imunizante.
O próprio Oswaldo Cruz foi olhar o caso.
Impugnou o atestado do médico, declarando-o de má-fé, por sua relação com organizações contra a vacina. O número de pessoas vacinando cai ao longo dos meses com a campanha contrária à vacinação.
A “Ditadura Sanitária”
A revolta começa após a promulgação da Lei da Vacina Obrigatória, em 31 de outubro de 1904. A prefeitura julgou necessária uma lei, em virtude da tensão em torno da vacina. Oficiais de saúde poderiam invadir residências e vacinar, à força, quem se opusesse.
O pânico geral de uma população pobre, não acostumada a parâmetros científicos, em grande parte analfabeta – somados ao nada carinhoso tratamento do governo e uma virulenta campanha de difamação – pavimentou o caminho da tragédia.
A fúria popular desencadeia sem organização, apesar da tentativa de instrumentalização por parte do senador-militar Lauro Sodré, e seu grupo político, através da “Liga Contra a Vacina Obrigatória”. A Liga, inclusive, merece um aparte antes que avancemos.
Motivações
A participação de parte da população nas atividades da Liga não significava um alinhamento tácito. Cabe olhar a necessidade que essas pessoas sentiam de fazer algo.
Esse algo está para além da truculência com o esquema de vacinação. Vendo o processo em perspectiva, percebe-se estresse acumulado na cidade ao longo dos anos imediatamente pregressos. Há cólera acumulada. A insensibilidade entorna o caldo no dia 11 de novembro.
Os políticos-militares Lauro Sodré e Barbosa Lima se entendiam como líderes da revolta de um povo que exigia a volta de um republicanismo tórrido. De marechais de ferro, como Floriano Peixoto. Não bastasse os primeiros governos da República nas mãos dos militares, para eles, o povo pedia a volta do florianismo.
Mesmo a Liga, que organizou os primeiros protestos, perdeu rapidamente o controle da situação.
Onda incontrolável
As forças de segurança não conseguem conter a ira. O povo se arma das ferramentas, entulhos, pedaços de ferro e pau usados nas reformas. Calçamentos são arrancados para fazer barricadas.
Foram construídos verdadeiros fortes de escombros. Espalhados por diversas áreas do centro, dificultam ainda mais a retomada da ordem.
O desenvolvimento do motim popular atropela tudo e todos, ganhando contornos inimagináveis. O centro do Rio de Janeiro virou uma praça de guerra. O povo interligou trincheiras, assaltou delegacias, preparou sua Armada, arraiou sua Canudos. Os becos, os morros, as casas abandonadas facilitavam a tocaia e a fuga.
Um relato exemplifica bem o tamanho da confusão. Conta sobre uns “malandros” que formaram um “reduto no Morro da Mortona”, bairro da Saúde:
Aparentemente, esse “reduto” conseguiu “atemorizar o governo à notícia propalada de que dispunha de um enorme canhão assestado sobre a cidade. Esse foco de resistência foi logo apelidado Porto Arthur, em lembrança daquele outro que, sob o comando do General Stoessel, durante a guerra russo-japonesa [1904-1905], ofereceu séria oposição aos nipônicos. Apenas, o Stoessel daqui seria o famigerado Prata-Preta e, ao fim das contas, a possante peça de artilharia ficou reduzida a um poste de iluminação pública, descansando sobre um carrinho de mão”.
Em meio ao fuzuê, uma tentativa de golpe militar tornou as coisas ainda mais brasileiras. Radicados na Escola da Praia Vermelha, na Urca, eles sonham sua importância no poder. Monarquistas também queriam ver o circo pegar fogo para maldizer da República.
A quartelada ocorreria no dia 15 de novembro, quando um novo-novo golpe militar daria à luz uma nova-nova República. Embebidos do positivismo, tomariam de volta o poder dos civis - três governos já teriam sido suficientes para “macular” o nobre espírito republicano.
Somente eles, os militares, poderiam restaurar ordem e progresso.
O que os sediciosos não esperavam era que a mazorca popular se estendesse e também os engolisse. Deve ter sido uma cena patética: o governo tentando conter o povo, militares tentando derrubar o governo, e o povo atropelando todo mundo.
É decretado estado de sítio no dia 15, revogada a obrigatoriedade da vacina no dia 16, e a situação começa a acalmar. São presos militares e civis, enviados para o Acre. O saldo é incontável. A cidade destruída e diversos mortos e feridos.
O desfecho
Muitas associações podem ser feitas sobre a história do Brasil a partir da Revolta da Vacina. Porém, novamente: os acontecimentos desse evento não se repetiram, nem repetirão. Deles é possível retirar padrões que se reciclam pelo tempo. Qualquer época responde por sua época.
Pensando no presente, podemos ficar com o que foi a história depois desse evento:
A varíola deixou de ser uma epidemia, e junto dela diversas doenças, graças às vacinas;
Oswaldo Cruz virou “O” Oswaldo Cruz, da FioCruz, respeitado mundialmente;
E diversas manifestações populares sem nenhuma direção organizada, pura liberação de ira acumulada, próprias de uma sociedade estrangulada permanentemente, desfilaram pelas avenidas.
*O livro que serviu de base, a quem interessar possa, chama-se “A Revolta da Vacina”, de Nicolau Sevcenko.
Este artigo foi escrito por Matheus Dias e publicado originalmente em Prensa.li.