Uma Coceira Chamada Marilyn
O filme Blonde, no ar pela Netflix e que traz Ana de Armas encarnando com competência uma convincente Marilyn Monroe, apesar de todas as controvérsias, consegue trazer uma desconstrução interessante de vários estereótipos que a indústria cinematográfica ajudou a construir a seu respeito ao longo de décadas.
Curiosamente, isto foi feito conscientemente em uma metalinguagem numa das maiores comédias da História do cinema. Dirigido por Billy Wilder, "O Pecado Mora ao Lado", é um filme que, guardadas as proporções da época, ridiculariza o machismo e brinca com o estereótipo do sex symbol, apresentando uma Marilyn que, fazendo mais do mesmo, acaba surpreendentemente interpretando o seu melhor papel na tela grande.
Às vezes é muito bom voltar à fonte e ter contato com filmes da fase áurea do cinema americano, não apenas pelo entretenimento, mas para entender os rumos que os gêneros cinematográficos tomaram em nossos tempos. A comédia, por exemplo, talvez seja o nicho mais aviltado do cinema, padecendo muitas vezes com a falta de relevância.
Nos idos de 1955, no entanto, a história era bem diferente. Ainda que se mantivessem sendo um produto para divertir as massas, havia espaço para muitos subgêneros distintos. Um deles era a comédia de situação ou costumes, onde pode se notar um requinte de inteligência delicioso que jogava uma luz crítica sobre nosso comportamento como sociedade.
Uma herança direta do teatro e seus grandes autores, como Molière, as comédias de situação ganharam seu público na sétima arte, com poucos atores em cena, dois ou três cenários e um texto absolutamente envolvente.
Após mandar sua mulher para o interior durante o forte verão nova-iorquino, Richard Sherman (Tom Ewell ), um pacato editor de livros de bolso baratos e cheio de imaginação, conhece uma modelo loira sem nome ( Marilyn Monroe ), que é sua nova vizinha do andar de cima.
Apesar de acometido de uma recente paranoia sobre a possibilidade de se tornar infiel - está lendo no momento um livro chamado "A Coceira do Sétimo Ano' (The Seven Year Itch), que fala da grande probabilidade de o homem se tornar infiel após sete anos de casamento, exatamente o tempo que ele tem de casado - ele convida a moça para tomar um drink em seu apartamento, e eles se tornam amigos.
Durante todo o seu relacionamento com a modelo, apenas amigável por parte dela, mas com uma tensão de atração incontrolável e hilariante de Richard pela loira, ele é perseguido por pesadelos e delírios de sedução e infidelidade.
Apesar de ser um cinéfilo incorrigível, confesso, que nunca fui muito fã de Marilyn no cinema. Há filmes interessantes estrelados por ela, mas até certo ponto, me incomoda um pouco a objetificação em que ela era colocada na maioria deles.
Ela já era uma grande estrela de Hollywood quando ganhou este papel, e por mais que representasse o mesmo estereótipo da loura burra/sexy/ingênua que a perseguiu por toda a carreira, é de se notar que aqui tudo converge em favor dela.
Tom Ewell, o editor de livros delirante que, entusiasmado com a viagem de sua mulher e filho para uma temporada de férias, tendo um apartamento todinho seu e com uma loira estonteante dando mais combustível aos seus delírios, está hilariante. São de rir alto todas as cenas em que confabula "puladas de cerca" tentando se afirmar como um macho alfa.
Mas nada disso soa misógino, agressivo, machista. Talvez um filme como esse, hoje, pudesse ser encarado como um grande deboche ao comportamento chauvinista de meus pares.
Voltando à Marilyn, suas cenas com seu parceiro de set são longas e afiadíssimas, diálogos muito inteligentes, algo que acabou me lançando a um questionamento: seria o sex symbol Monroe, uma atriz de tão poucos recursos a ponto de não segurar as cenas com um comediante e ator mais experiente? Ficamos mesmo na dúvida se ela era mesmo aquele estereótipo raso ou sabia usar esse personagem deliberadamente em seu favor.
Aliás, a metalinguagem que a favorece bem no roteiro começa a partir da própria caracterização, a sua personagem não tem nome no filme. Ela simplesmente dá um show. São tantos os momentos hilariantes, sempre entremeados por Concerto Para Piano #2 de Rachmaninoff, que, quando chegamos à famosa cena de Marilyn segurando o vestido pra que o vento do trem do metrô não o levante, aquilo já não parece tão importante.
Uma cena memorável, icônica, mas que é apenas mais uma dentro de um grande e maior contexto. Sem deixar de creditar a competente direção de Billy Wilder, com quem Marilyn faria outra grande comédia, anos depois, " Quanto Mais Quente Melhor". "Pecado" é uma comédia de costumes e situação recomendadíssima em qualquer tempo, qualquer hora, qualquer companhia.
Um filme para curiosos, despretensiosos ou para aqueles que ainda querem entender por que Marilyn Monroe deixou de ser uma pessoa para se tornar um mito.
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.