Uma compreensão legal das DAO's
A classificação legal das DAO’s
A Organizações Autônomas Descentralizadas - DAO (Decentralized Autonomous Organization), são um modelo de desenvolvimento de estruturas sociais e de negócios criadas dentro da Blockchain, a partir de Smart Contracts que permitem a criação de sistemas de governança distribuídos, ecossistemas econômicos inovativos e cadeias de valor e de serviços.
Sua estrutura descentralizada permite um avanço na criação de novas formas de trabalho, organização de pessoas e compartilhamento de experiências e ideias, superando modelos tradicionais nos quais a cadeia de controle opera de forma vertical e a execução das atividades é comprometida por dificuldades comunicativas e deliberações institucionais rígidas.
Com a integração à Web 3.0, a revolução da internet tende a consolidar o estágio avançado da globalização, integrando sociedades diversas em cada vez menos tempo e de maneiras cada vez mais participativas. A integração de modelos algorítmicos tendem a reduzir custos, resolvendo tarefas repetitivas, a tokenização amplia as possibilidades de negócios e distribuição de riscos e lucros, em um ambiente baseado na segurança, transparência e confiabilidade..
No entanto, se por um lado o desenvolvimento da comunidade em torno das organizações descentralizadas avança em uma escala potencial, sua absorção e regulamentação legal acabam por encontrar no legislador um operador não tão ativo, que, tampouco, se desloca na mesma velocidade da inovação.
Por tal motivo, no presente momento as DAO’s encontram-se em um momento de intensas discussões sobre sua adequação legal, especialmente no que tange a competência e jurisdição dos órgãos judiciais e legais, os limites da responsabilidade legal da entidade e de seus membros, sua personalidade jurídica e os requisitos de compatibilidade aos códigos das leis.
As organizações na história
Em seu livro, Reinventando as Organizações, Frederic Laloux se antecipa ao alcance de um novo estágio das organizações sociais, descrevendo como os modos de organização social foram construídos ao longo da história conforme a própria consciência humana foi se desenvolvendo.
Segundo aponta, historicamente a evolução de consciência das sociedades promove a criação de formas diversas de organizações desde os primeiros agrupamentos coletivos, ao desenvolvimento da agricultura, a criação das cidades, o desenvolvimento do comércio e dos mercados, as revoluções da indústria e a criação de megacorporações, cada momento correspondeu a uma característica específica de consciência da época.
Partindo dessa provocação, inevitável pensar na saturação dos modelos de organização atuais, os desvios da burocracia administrativa, a concentração vertical de poder e participação, a falta de representatividade e democratização dos espaços decisórios, até mesmo a reprodução permanente de ambientes de trabalho física e mentalmente não saudáveis fazem emergir e necessidade de reformulação e mudança.
É nesse sentido que as DAO’s, para além de uma visão romântica e idealista de seu potencial, apresentam inovações importantes que parecem acompanhar o que o autor chama de desenvolvimento do estágio da consciência.
Os desafios legais
O questionamento de uma lacuna legal para o funcionamento das DAO’s pode parecer um contrassenso, já que, a adoção da tecnologia blockchain tem em sua genética justamente a superação das autoridades centrais, a busca por liberdade através de modelos sociais descentralizados e independentes, para além do alcance dos órgãos oficiais.
No entanto, em um estágio avançado da internet e da implementação de fato da tecnologia blockchain, alguns dos princípios do movimento cryptopunk ou dos mandamentos do manifesto de independência do ciberespaço, soam como sonhos utópicos em um mundo onde em verdade as inovações vão se calcificando na estrutura social, de forma própria, autêntica, mas, não completamente desvinculada.
É o que apontam Primavera De Filippi e Aaron Wright em seu célebre livro Blockchain and the Law:
Embora blockchains criem sistemas cada vez mais autônomos e potencialmente desregulados, ainda existem meios para moldar e controlar seu uso e implantação. Blockchains podem reduzir a necessidade de intermediários, mas é improvável que os eliminem completamente. Mesmo supondo em argumento que as blockchains levem à desintermediação generalizada, leis, forças de mercado, normas sociais e o próprio código poderiam ser aproveitados para preservar o estado de direito (tradução direta) (p.19)
Portanto, a disputa sobre a forma de interpretação quanto à sua constituição, funcionamento e operacionalização parece também ser um ponto de atenção à própria comunidade que cada vez mais se consolida, em um mercado que movimenta mais de $10 bilhões de dólares, criando diversos grupos e nichos de negócio e oportunidades.
Assim, restam questionamentos, necessários para a maturação legislativa, sobre qual a classificação legal das DAO’s ou ainda quais os limites de responsabilidade em face de terceiros e seus membros? Quem seriam seus representantes legais? Quais os requisitos técnicos necessários para a tokenização e distribuição de seus ativos e ônus? Quais os limites de sua liberdade patrimonial? Como se aplica às suas produções os aspectos dos direitos de autoria e propriedade intelectual?
A aplicação legal: o caso do Wyoming, offshore ou o cooperativismo
Em julho de 2021, o Estado do Wyoming se tornou o primeiro a promulgar uma legislação específica para a formação de DAO’s. O regimento equipara as organizações descentralizadas à sociedades de responsabilidade limitada, sendo definidas como entidades compostas por um ou mais membros, sem uma finalidade específica, desde que a atividade não seja ilícita, podendo serem geridas algoritmicamente, desde que o smart contract possa ser modificado.
Para sua constituição, são descritos requisitos de validade, como a inclusão da sigla DAO no nome, a categorização de seus membros, distribuição e transferibilidade de seus poderes, suas responsabilidades e condições de exclusão. No que tange a gestão, a responsabilidade de seus membros não se confunde com eventual responsabilização legal da organização, conforme os limites da responsabilidade civil e da boa-fé.
O texto legal ainda dita um sistema de equilíbrio na distribuição de poderes decisórios e participação dos projetos. Todavia, segundo o próprio Senador Chris Rothfuss, um dos idealizadores, o texto legal não traz uma adequação definitiva sobre o tema, mas, visa trazer significados e distinções que possam orientar as consequências e intervenções legais e jurídicas.
Por sua vez, a tentativa vem sendo criticada por alguns analistas que apontam uma falta de sintonia entre os requisitos legais e alguns do princípios basilares das DAO’s, como uma suposta confusão na definição das formas de gerenciamento algorítmico, a vinculação obrigatória a um modelo de governança rígido e outros requisitos que poderiam afetar o estabelecimento das organizações.
Em artigo publicado pela Wake Forest University o projeto é criticado, colocado como invasivo e inoportuno, sendo apontado como de pouca inovação, já que, desde 2018 o estado de Vermont (US) permitiu a criação de empresas de responsabilidade limitada baseada em blockchain (BBLLC). Um modelo semelhante também já foi implementado no estado do Delaware onde as DAO recebem um invólucro legal (“legal wrapper”) para permitir o investimento em aplicações de blockchain e participações em organizações descentralizadas com delimitação de responsabilidade de seus membros.
Outra alternativa é o registro em paraísos fiscais com as Ilhas Marshall, primeira nação a regulamentar a alternativa legal, ou outras jurisdições que já possuem uma relação mais avançada com o universo cripto. Em artigo publicado pela Bankless, Adam Miller, fundador da MIDAO, explica como sua organização opera na ilha e aponta como a flexibilização e registro através de Smart Contracts, facilita, operacionaliza e legaliza a estrutura legal de DAOs no local.
No entanto, parece haver dúvidas sobre os limites do escopo de atuação de organizações geridas sobre esse modelo em casos em que sua atividade extrapolam ou conflitam com determinadas circunstâncias e aparatos institucionais.
Por fim, um vínculo quase natural quando se percebe a coparticipação, o mutualismo de interesses e compartilhamento dos resultados, é a associação ao modelo de Cooperativas que segundo a lei brasileira é “formada por pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.”
Para James Holbein, o modo de funcionamento das DAO’s se assemelha muito aos princípios cooperativos de Rochdale, que definiram no caso norte americano os critérios basilares para que uma organização fosse enquadrada como uma cooperativa. No entanto, diversos empecilhos legais, requisitos sobre o conselho, administração, estatuto, competência e jurisdição ficam em aberto, podendo criar barreiras de rigidez que podem afetar sua consolidação.
Conclusão
O caminho para a construção de uma adequação legal para as DAO’s ainda está indefinido, havendo dificuldades e questões que ao que parecem deverão ser ajustadas conforme cada legislação e cada necessidade.
A ideia de se construir um invólucro legal vem ganhando espaço, parece haver um esforço de compatibilização entre as regras da lei e as regras dos códigos (Rule of code and rule of law), é a lex cryptographica cada vez mais interagindo com os desafios de adaptação e integração. Por enquanto, para além do modelo que seja aplicado, há indicativos de uma necessidade de compreensão global das DAO’s não como uma anomalia, mas, o resultado de uma transformação real.
A superação do espaço pelo tempo de interação, compartilhamento, desenvolvimento de projetos por pessoas em várias partes do mundo, colocam questões sobre onde as DAO’s seriam estabelecidas ou ainda qual a legislação competente. Para além disso, abrem se as portas para a discussão sobre a personalidade jurídica de tais organizações ou ainda até que ponto sua regulamentação não poderia ser inteiramente garantida por smart contracts, tokens de utilidade e direitos ou NFT’s com seus limites e requisitos legais.
De toda forma, o direito deve caminhar sempre no sentido do desenvolvimento e inovação humana, sendo irresistível impor à tais organizações modelos convencionais de uma outra realidade que não mais se apresenta com a evolução da Web 3.0 e de novas formas de experiência e compartilhamento. Mais do que o aproveitamento das estruturas legais já vigentes, o caminho da inovação pode também ser uma oportunidade para a transformação dos próprios textos legais e jurisprudências nacionais.
1 - LALOUX, Frederic. Reinventing Organizations: A Guide to Creating Organizations Inspired by the Next Stage of Human Consciousness.
2 - Blockchain and the law: the rule of code. Primavera De Filippi and Aaron Wright.
Este artigo foi escrito por Verber Alves de Souza e publicado originalmente em Prensa.li.