Uma dose de espionagem, por favor. Com gelo.
A guerra é travada, pelos grupos dominantes, contra seus próprios súditos, e o seu objetivo não é conquistar territórios nem impedir que outros o façam, porém manter intacta a estrutura da sociedade. (1984, George Orwell)
Nos últimos anos, foi retomado o entusiasmo do célebre livro 1984 de George Orwell, e muito provavelmente você está cansado de ler sobre isso. Mas, dessa vez, espero profundamente que você não mais cite esse livro, mas sim, que compreenda seu impacto na humanidade e quem deu origem ao pensamento de Orwell.
Espionagem na cara dura mesmo ou, melhor dizendo, controle social?
Com o aumento de número dos home offices, muitos chefes não acreditam no desempenho de seus funcionários, embora a produtividade tenha crescido. Posto isso, muitas companhias implementarem softwares de monitoramento nos gadgets dos seus colaboradores. O efeito social é tão grande que Satya Nadella, CEO da Microsoft, o intitulou de “paranoia da produtividade”, em uma entrevista recente à Bloomberg.
Por que você pensa que as bobagens são coisas ruins? Se a tolice humana fosse nutrida e cultivada ao longo dos séculos da mesma maneira que a inteligência, talvez conseguíssemos dela algo extraordinariamente precioso. - Ievguêni Zamiátin
Na América do Norte, segundo uma pesquisa da consultoria Gartner, o uso de softwares de monitoramento duplicou no período da pandemia, e continua no seu pós. Falando em termos práticos, dois terços das empresas de médio a grande porte norte-americanas estão usando esse tipo de sistema.
E o Brasil?
Também entrou no hype. A fSense, criada pelo Grupo Arcom, disse à Você S/A que, de março para cá, as vendas de licença da ferramenta de monitoramento subiram 2.000% (alarmante, não é mesmo?).
Da espiada do Pedro Bial ao comprometimento da produtividade
Esse aumento significativo de softwares espiões, intitulados de bossware (boss = chefe, ware = o utensílio pelo qual é feito), não são muito bons para a economia da empresa, gerando um “efeito rebote”. Uma pesquisa das companhias de software Qatalog e GitLab, realizada nos EUA, revela que essas techs, por exemplo, estimulam o “teatro da produtividade”, em resumo: os trabalhadores perdem mais de 1h por dia fazendo tarefas extras, como respondendo e-mails e mensagens do Slack fora do horário regular, para provarem que estão ocupados.
Segundo os pesquisadores, esse é um sintoma derivado da flexibilidade de horários, muito comuns nos regimes híbridos e de home office. O ponto nodal é que o “boss” somente vê o tempo que seu funcionário passa online, mas não o desempenho em si. Ou seja, as pessoas não possuem autonomia para gerenciarem seu tempo à sua maneira, objetivando um melhor desemprenho.
Um melhor que, infelizmente, não passava de um menos mau. Aldous Huxley - Admirável Mundo Novo
Esse tipo de espionagem e monitoramento, além de gerar estresse, também gera a perda de credibilidade e transparência nas equipes.
Pois essas ferramentas, normalmente, monitoram o volume de cliques, do uso do teclado e eventuais captura de telas dos PCs. Consequentemente, com o bom uso do “jeitinho brasileiro” ou melhor dizendo, “jeitinho humano”, os trabalhadores estão instalando softwares que simulam a continuidade de tarefas (mouse jigglers e que imitam notificações do Slack), somente para contar pontos no software espião.
Saudades CLT
Ainda que muitos reclamem da reforma trabalhista, com certeza ficarão escandalizados com o que ocorre nos EUA. Na terra do Tio Sam, a veia dos direitos trabalhistas é tão fraca que um executivo do setor financeiro relatou ao The New York Times que o app espião utilizado em sua empresa considerava qualquer ausência, como ir ao banheiro, como tempo ocioso, logo, o saldo do tempo perpassado no sanitário era descontado de seu banco de horas.
Não precisa nem dissertar que esse tipo de aplicativo certamente não ajuda aos colaboradores a quererem dar seu máximo, correto?
Não, Não sou um Robô
Obviamente, é importante cada setor considerar a diferença do seu fluxo de trabalho, principalmente aquelas ligadas à criatividade, e intelectuais, as quais precisam de um maior grau de detalhamento.
Inclusive, a própria CLT brasileira prevê um tempo de intervalo inter jornada para os trabalhadores de digitalização (que, obviamente, são a maioria hoje em dia), já que precisam de atenção a cada detalhe escrito.
Pesquisas demonstram que a pausa é vantajosa tanto para a saúde mental quanto para o desempenho e, obviamente, os softwares certamente não possuem um framework para contabilizar isso…
Já falei por aqui sobre o quiet quitting, e como há uma cultura do pensamento sobre o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Peso que, por isso, os Bosses devem estar querendo “apertar o cabresto” e têm intensificado o uso dos programas de espionagem como reação, por acreditarem que os funcionários não vão querer se esforçar como antes.
Uma dose de compreensão, por favor
Obviamente, os trabalhadores não gostam dos softwares espiões. Um estudo global feito com 750 profissionais de tecnologia pela consultoria Morning Consult mostra que mais da metade da classe deixaria de aceitar um novo emprego, caso a empresa usasse técnicas de espionagem de atividades. Porém, (ainda) não existe uma lei que impeça as empresas de instalarem esses programas ao redor do mundo (sim, não só no Brasil), e se você trabalha em home office para uma empresa estrangeira, veja bem isso, antes.
Qual a solução?
Confiança é a base de tudo, e sim, é uma frase que sua avó dizia. Mas ela é verdadeira. As empresas devem criar (ou recriar) um ambiente de transparência, honestidade e confiança, para que. assim, os próprios colaboradores queiram produzir mais, por se sentirem confortáveis, e não haver uma alta rotatividade de trabalhadores.
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Este artigo foi escrito por Maria Renata Gois e publicado originalmente em Prensa.li.