Uma nau à deriva no G20
Crianças, jovens, adultos e idosos: acredito que ninguém tenha escapado ileso das bancas escolares sem reproduzir alguma decoreba simples sobre História do Brasil.
Um destes fatos é o afamado “descobrimento”. A narrativa de que a chegada aqui dos portugueses foi um erro de rota, que Pedro Álvares Cabral tinha se perdido no Atlântico com sua nau, e que as terras teriam sido “descobertas” naquele ano de nosso Senhor de 1500, é um dos mitos mais reproduzidos e mais arraigados na sociedade brasileira.
Em breve explanação, vamos esclarecer algumas coisas:
Cabral era um capitão profissional, e os cálculos de navegação dos portugueses eram famosos pela precisão e objetividade;
as terras do Atlântico podiam até não ter sido visitadas com tanta regularidade, mas eram muito bem conhecidas pelos marinheiros daquela época (mapas dos séculos XV e XVI já mostravam isso);
a nau que aportou em 1500 nas “terras virgens” do Brasil cumpria mera formalidade, registrando posse portuguesa antes que alguém o fizesse (os concorrentes estavam na cola!).
Mappa Mundi de 1500, de Juan de La Cosa, cartógrafo e explorador espanhol.
À deriva mesmo parece estar a nau brasileira de 2021, e a reunião do G20 demonstrou que é melhor que saibamos nadar (ou boiar) pra não afundar!
Alguém segure o timão, o capitão sumiu!
O atual presidente do país, Jair Messias Bolsonaro (sem partido) viajou para a Itália como representante brasileiro entre os chefes executivos das nações que fazem parte do G20, grupo das vinte maiores economias do mundo.
Ao menos, esse seria o objetivo do deslocamento do chefe do executivo brasileiro e de sua comitiva. Porém, os caminhos tomados pelo presidente em terras italianas passaram longe de boa parte dos compromissos estabelecidos no evento oficial.
(Imagem/reprodução: Facebook)
Numa espécie de edição especial do programa “De volta para a minha terra”, Bolsonaro visitou Anguillara Veneta, cidade de 4 mil habitantes em que seus ancestrais teriam vivido.
Em um cerimonial reservado, chorou ao ouvir uma música que a mãe cantava em sua infância. Do lado de fora, manifestantes gritavam palavras de ordem contra sua presença.
Em Pádua, o presidente do Brasil visitou o sepulcro de Santo Antônio. Com a mão encostada na sepultura sacra, baixou a cabeça num gesto de oração. Enquanto isso, a força policial reprimia violentamente protestos contra ele, inclusive usando jatos de água.
Na Comuna de Pistóia, a agenda previa uma homenagem aos pracinhas brasileiros e uma missa. Dom Fausto Tardelli, o bispo local, recusou-se a celebrar o evento religioso na presença de Bolsonaro e do seu anfitrião, Matteo Salvini, líder do partido italiano de ultradireita Liga Norte.
Os passeios constantes do presidente pelas ruas de Roma ignoravam a necessidade de sua presença nos encontros e reuniões oficiais, e serviam de palco para o espetáculo da violência de sua guarda particular contra manifestantes e jornalistas que cobriam sua passagem.
E o G20?
Enquanto o presidente passeava pela Itália, a nau brasileira navegava nos mares do G20 sem direção. E mesmo com a rara presença do chefe do executivo brasileiro, os resultados foram os mesmos (ou piores!).
Quais as realizações de Bolsonaro na reunião das maiores economias do mundo? Entre pisar no pé de Angela Merkel, primeira-ministra alemã, e dizer para Recep Erdogan, presidente da Turquia, que tinha amplo apoio popular e que a Petrobrás era um problema, sua passagem pelo G20 foi marcada pelo isolamento e pela agenda vazia de reuniões bilaterais.
Isolado e perdido (Imagem/reprodução: Getty Images)
Some-se a isso o encontro com John Kerry, enviado especial norte-americano, que foi anunciado pelo brasileiro como Jim Carrey, nome do famoso humorista astro de filmes como “Ace Ventura” e “O Máskara”.
A ausência do presidente nos eventos foi tão constante que sequer na foto oficial, na Fontana di Trevi, em Roma, sua imagem foi registrada. Todos os representantes nacionais estavam lá, menos o brasileiro.
Seu isolamento foi nítido e vexatório. Não pôde ser recebido pelo primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, por não ter sido vacinado e nem usar máscara. Na Basílica de São Pedro, foi avisado de que não seria recebido pelo Papa Francisco.
Sem espaço entre os líderes mundiais, puxou conversa com garçons sobre futebol e encontrou por acaso com Tedros Adhanon, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, com quem teve uma conversa rápida e pouco propositiva.
Procurem seus botes e coloquem seus coletes salva vidas. A nau continua à deriva, e avaliando os últimos eventos, é possível que afunde.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.