Uma saga para ler – e ouvir
Conta pra gente: o que há em comum uma banda de metal sinfônico e o Tio Patinhas? Não recomendamos apostar sua moedinha número 1 dizendo que não faz sentido. Porque faz, e muito!
A banda é a Nightwish, fundada na Finlândia em meados dos anos 1990, responsável por sucessos como Nemo e Once. Seu líder, o tecladista Tuomas Holopainen, é admirador de longa data de histórias em quadrinhos.
Fato é que Holoppa… Hollopai… Holo… nosso amigo cujo nome parece uma sopa de letrinhas, encantou-se com uma obra escrita e desenhada pelo cartunista estadunidense Don Rosa: The Life and Times of Scrooge McDuck, aqui conhecida como A Saga do Tio Patinhas.
Pato aqui, pato acolá
Don Rosa tem um traço requintado, emulando o estilo clássico das histórias Disney. Seus desenhos lembram muito os de outro mestre Disney, Carl Barks, mais conhecido como “o homem dos patos”. Não é para menos: Barks criou praticamente toda a família do Pato Donald e o complexo universo habitado por eles.
Com esse traço rico (com perdão do trocadilho), Don Rosa produziu a saga, contando a vida do pato mais rico do mundo, a partir de sua infância na Escócia do final do século XIX.
A obra merece realmente ser chamada saga: foi desenhada entre 1992 e 1999, publicada em partes ou num calhamaço de quase quatrocentas páginas, juntando a trama original e mais algumas histórias produzidas posteriormente com a função de enriquecê-la (como se já não houvesse detalhes de sobra).
Mudança radical de estilo
Tuomas Holopainen pretendia criar algo diferente num álbum solo, que fugisse do estilo tradicional da Nightwish. Inspirado pela gigantesca aventura, pôs mãos à obra e criou um álbum épico: Music Inspired by The Life and Times of Scrooge (acreditamos não ter usado o sobrenome da Família McPato para não ter de pagar o pato, ou melhor, evitar problemas jurídicos com a Disney).
Lançada em 2014, a música se encaixa perfeitamente nos desenhos de Don Rosa. Há uma peça para cada capítulo, evocando com maestria as passagens da vida do Tio Patinhas. Caberia com facilidade numa superprodução hollywoodiana, daquelas para concorrer ao Oscar mesmo.
Ao contrário do que muitos esperavam pelo histórico do artista, Life and Times of Scrooge não tem – praticamente – nada que lembre o gênero metal, mas é uma obra sinfônica grandiosa, recheada com vocais caprichados.
Alguns temas trazem o espírito de aventura, como Into the West e Cold Heart of The Klondike ou mesmo a faixa inicial, Glasgow 1877. Outras são pura emoção, como Go Slowly Now, Sands of Time e Goodbye, Papa. O destaque maior está na parte final, A Lifetime of Adventure, uma sinfonia que resume a história do personagem, às vésperas de uma iminente aposentadoria.
Vale muito mais que uma moedinha - imagem: Joey Kyber / Pexels;
Um show à altura da saga
Tuomas Holopainen contou com uma equipe de peso na construção do álbum: a parte orquestral é executada pela Sinfônica de Londres (aposto, você jamais imaginou uma orquestra desta envergadura “tocando música” para uma história em quadrinhos) e diversos músicos convidados, a maioria finlandeses de quem você possivelmente jamais ouviu falar.
Vale destacar a belíssima voz de Johanna Kurkela, interpretando a personagem Dora Cintilante (grande amor de Patinhas e o maior arrependimento da vida do pato). Johanna coloca um peso emocional descomunal em sua interpretação, capaz de derreter corações gélidos como as montanhas do Klondike e de certos patos avarentos.
Há ainda a participação do instrumentista inglês Troy Donockley, à época integrante da Nightwish, comandando instrumentos típicos da música irlandesa (e celta), como o bodhran.
Music Inspired by The Life and Times of Scrooge pode ser ouvido gratuitamente em vários vídeos do YouTube, ou mesmo adquirido fisicamente em algumas lojas internacionais da Internet, pela bagatela de aproximadamente 170 patacas, ou melhor, reais. Já a Saga em quadrinhos dá pra encontrar em sebos ou por alguns sites, entre cinquenta e noventa reais dependendo do estado de conservação do livro.
Aventura além da diversão
Sobre o livro: Don Rosa é daqueles artistas que não se limita ao primeiro plano. Há muito mais além da cena principal. Não à toa é considerado um dos mestres da nona arte. Seus quadrinhos frequentemente têm diversos planos de ação. Pode ser apenas uma piadinha (há um trecho de gags hilárias com as irmãs de Patinhas, durante sua juventude) e vez por outra cenas que ajudam na compreensão do roteiro ou evidenciam algum detalhe importante.
Um show de imagens, desenhado quadro a quadro, sem uso de computador ou qualquer técnica eletrônica. Produzida por sete longos anos durante a década de 1990, é uma história em quadrinhos raiz.
Do tamanho de uma vida
O roteiro em si, narrado nos mínimos detalhes, começa na infância do pato, na Glasgow de 1877 (sim, Patinhas é cidadão escocês), mostrando suas aventuras através de toda a vida em busca de fortuna.
Lutando contra as mais complicadas adversidades, empreende diversas atividades até conquistar quase tudo o que deseja e acaba se aposentando, com idade avançada, em Duckburg (cidade mais conhecida entre nós como Patópolis).
E aí… bem, neste ponto da vida acontece algo que o transformará de verdade no pato aventureiro que bem conhecemos e acompanhamos em milhares de quadrinhos e em séries de animação como Duck Tales. Mas não vale a pena adiantar.
Se alguém da empresa do Mickey, mais exatamente ligada ao Disney+ estiver lendo aqui na Prensa, sugiro: transformem essa história num longa de animação! Já tem até trilha sonora pronta. O que estão esperando?
A Saga do Tio Patinhas fez muito sucesso nos Estados Unidos, na Europa (não se esqueça de Tuomas Holopainen é cidadão finlandês) e teve uma boa vendagem também em terras brasileiras.
Publicado pela Editora Abril periodicamente nas décadas de 1990 e 2000, recebeu uma “edição definitiva” cheia de extras em 2016, com acabamento visual e editorial similar ao original.
Se você ainda faz parte de um grupo (cada vez menor) que acha que quadrinhos são coisa de criança, recomendamos fortemente: reconsidere.
Vale muito comprar esse livro, ainda mais ler usando a música de Holopainen como acompanhamento. Ponha a mão no bolso (ou na caixa-forte) e vá atrás de A Saga do Tio Patinhas. Você não irá se arrepender.
Imagem de capa - Música para seus olhos - imagem: Cottonbro / Pexels;
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.