Vida em Marte: rolam as pedras
Desde que o mundo é mundo, mais precisamente a partir do momento em que alguém olhou para o céu estrelado e deduziu que aquele monte de pontinhos não eram vaga-lumes ou os espíritos dos antepassados iluminando a abóbada terrestre, o planeta Marte chama nossa atenção.
Talvez pelo fato de brilhar de um modo e cor diferentes, o quarto planeta do sistema solar (se não lembra, somos o terceiro, contando a partir do Sol) é nosso vizinho mais próximo. Chegado mesmo, daqueles com quem se troca uma xícara de açúcar ou alguns pedregulhos.
Juntos e misturados
Um destes, em 1996, foi encontrado na Antártica. Não na cerveja, mas em algo bem mais gelado, aquele continente que fica abaixo da Terra do Fogo. Cientistas anunciaram que alguns materiais fósseis ali presentes, davam a entender que micro-organismos – possivelmente, bactérias – habitaram Marte num passado remoto. Chegando aqui de carona num pedaço de pedra.
A maior parte da imprensa comemorou, muitos estampando “Vida em Marte” nas capas dos jornais. Não estávamos sozinhos no universo. Pouco tempo depois, infelizmente, chegou-se à conclusão que a tal pedra havia sido “contaminada” por micro-organismos terrestres. Ainda não era daquela vez.
Mas depender destas pedras marcianas que vez por outra viajam pelo cosmo, arrancadas do solo do planeta devido ao impacto de outras pedras que viajaram pelo cosmo, e caíram cá na Terra, não é muito produtivo. Até porque não caem pedras de Marte o tempo todo, e nem sempre é fácil descobrir sua origem.
Aí você coça a cabeça e pergunta, “e aquele monte de carrinhos que a NASA vive mandando pra lá? Não servem pra revirar umas pedras e ver se tem formiga embaixo?”.
Botando o carro na estrada
Seu questionamento é corretíssimo. Mas realmente não havia muito o que fazer, porque os instrumentos a bordo daqueles jipinhos não eram exatamente dedicados a encontrar algum indício de vida com precisão. Mas isso mudou agora com o trabalho do Perseverance, que longe de ser um “carrinho de controle remoto” como muitos de seus antecessores, tem o tamanho de um Fusca.
Também conhecido pelo apelido Percy, o carro-robô tem dezenas de equipamentos de ponta, um braço mecânico de alta precisão e muitas, muitas câmeras. Uma de suas atribuições, aliás, é revirar as pedras para ver se acha formigas, ou coisas bem menores.
Só que nos últimos cinco meses esse fusquinha espacial resolveu dar umas bandas dentro de uma cratera, conhecida como Jezero. Não é uma cratera qualquer, daquelas formadas pelo impacto de meteoros. Para começo de conversa, tem uma extensão de quarenta e cinco quilômetros, o que nem é impressionante em termos marcianos. Porém, ao que tudo indica, foi um grande lago – de água salgada – num passado distante, com uma bela embocadura do delta de um rio que desaguava nele.
Não espere salmões marcianos saltitando. A água desapareceu da superfície de Marte há muitas eras. E em sua caçada por formigas (brincadeira, ele sabe que não há formigas lá), encontrou uma pedra particularmente interessante, que os técnicos chamaram de Wildcat Ridge.
Com cerca de um metro de comprimento, é uma rocha formada por lama e areia presentes no local, na ocasião da evaporação. Curioso como seu irmão Curiosity, o Perseverance “cavocou” a rocha, e a analisou com um instrumento chamado Scanning Habitable Environments with Raman & Luminescence for Organics & Chemicals, ou apenas SHERLOC, provando antes de mais nada que o povo da NASA é criativo e tem senso de humor.
Sopa marciana da vida
A descoberta foi impactante: a pedra estava cheia de minerais orgânicos, recheada com o que cientistas chamam de “blocos de construção da vida”. Pelo menos, da vida como conhecemos: carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo e enxofre.
A análise ainda descreve que os materiais orgânicos são “aromáticos”. Interessante, ainda vem com um cheirinho de brinde. Mas contando que um dos ingredientes é enxofre, acho desnecessário se animar.
Não querendo jogar um balde de água fria (evaporada) em nossas esperanças, apesar da descoberta do Perseverance ser um feito e tanto, ele não pode ir muito além com suas análises. A coisa fica muito mais intrincada para “bater o martelo” e dizer que “sim, é vida''. As amostras precisam ser analisadas um pouquinho mais a fundo e um bocadinho mais longe, na Terra.
Minerador interplanetário
Mas antes que você desanime de vez e saia por aí chutando pedrinhas (que por um descuido da natureza podem atravessar a atmosfera e cair em outro planeta), saiba que nesse ponto começa uma missão para a qual nosso fuscão Percy já era incumbido.
Com a ajuda de seu braço mecânico, ele pega as amostras colhidas, abre tubos hermeticamente preparados (que esperamos sejam mais simples de abrir que vidros de pepino em conserva), deposita-os em seu interior, coloca-os no bolso (ou melhor, num reservatório especial, e continua seu trabalho de revirar pedrinhas.
Dentro de dois meses, ou seja, lá pelo final de novembro de 2022, o Perseverance vai levar todos os tubos coletados com amostras e deixá-los num ponto específico no meio da cratera. Logo depois, continuará o trabalho.
Logística de outro mundo
Bom, exceto se algum lixeiro marciano passar por lá antes disso e levar os tubinhos embora, uma nave – terrestre – irá pousar por ali entre 2030 e 2033. Então, outro robô descerá de seu interior, coletará as amostras e as levará para bordo.
Depois de aproveitar e tomar um café com Percy, que já não via ninguém há muito tempo, pegará o caminho de volta para casa. Chegando aqui na nossa querida (e mal cuidada) Terra, irá entregar as amostras para os exobiólogos, que enfim realizarão análises mais profundas.
Ainda demora, mas o potencial do Perseverance encontrar muita coisa nesse meio tempo é imenso. Pode até ser que se encontre alguma evidência mais séria até lá. E quem sabe, finalmente confirmaremos que não estamos (ou estivemos) sozinhos no Sistema Solar. Que convenhamos, seria um tremendo desperdício de espaço.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.