Vida louca vida: arte, eleições e polarização
O lobo da discórdia | Imagem: divulgação
Desde que o mundo é mundo, arte e política mantém uma curiosa simbiose. Às vezes se aproximam; às vezes, repelem-se.
Imagino, ainda no início da democracia, na Grécia Antiga, quando Xanthopoulos, candidato, quis aproveitar o sucesso da comédia de Papadakis, encenada no anfiteatro local, para se promover. Parte do elenco deve ter se revoltado, transformando o espetáculo numa legítima tragédia. Grega.
No Brasil do século XX, músicas de cunho crítico a este ou aquele político sempre estiveram em alta. Um bom exemplo é O Bonde de São Januário, de Wilson Batista, que mesmo fazendo uma crítica velada ao governo de Getúlio Vargas, foi censurada pelo temível DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) do Estado Novo.
Já no período da ditadura militar, artistas alinhados ao regime, como Dom e Ravel, criadores e intérpretes da famosa Eu Te Amo Meu Brasil, canção pra lá de ufanista, adotada como hino de propaganda, desfrutaram das benesses governistas. Já quem se alinhava à oposição, passava por poucas e nada boas.
Uma parada ideológica de sucessos
Corta para 1989. Lobão, roqueiro conhecido por sua postura contestatória, não apenas declara seu voto para um candidato, como compõe um jingle, parodiando a música Tutti Frutti de Elvis Presley. A frase “A-bop-bop-a-loom-op a-lop-bop-boom”, convertida em “Eu-voto-em-Lula-Presidente” é ouvida em várias inserções da campanha presidencial daquele ano.
Como cereja do bolo, ainda declarou seu voto numa apresentação no Domingão do Faustão, sendo banido dos programas da TV Globo por anos a fio.
Corta para 2014. Arrependido com suas escolhas, Lobão passa a fazer campanha contrária ao partido do ex-presidente.
Corta para 2016. Impeachment de Dilma Rousseff. Lobão comemora os novos tempos.
Corta para 2018. Lobão declara seu voto a você-sabe-quem, eleito no mesmo ano.
Corta para 2019. Lobão declara que o eleito Jair Bolsonaro “não tem capacidade para governar” e passa a criticá-lo.
Corta para 2021. Lobão rompe publicamente com Roger, líder do Ultraje a Rigor e apoiador da primeira hora do atual presidente. De quebra, declara que o atual chefe do executivo tem de ser tirado do poder “de qualquer jeito”.
Corta para 2022. A TV Globo escolhe a música Vida Louca Vida, de Lobão e Bernardo Vilhena, para a abertura da novela Cara e Coragem. Convida IZA e Emicida para interpretar. Os dois artistas, notadamente engajados em movimentos sociais, recusam-se veementemente.
Motivo da recusa? Ambos não apoiam as posições políticas de Lobão.
“Pesadão”
IZA e Emicida: concordando em discordar | Imagem: reprodução Instagram/UOL
Vamos tentar entender. Emicida e IZA, assim como a maior parte da classe artística e cultural, apoiam a candidatura do ex-presidente Lula, o que não é surpresa para ninguém.
A TV Globo, que no passado não queria saber de Lula, nem que fosse à doré, percebeu que Bolsonaro é sim um problema muito maior. Não declara apoio ao líder do PT, mas já o encara com sorrisos e certa simpatia. E não são os únicos.
Pois veja só que superou velhas desavenças e fez o agrado ao compositor, escolhendo uma de suas músicas de maior sucesso para o tema da nova novela das 18 horas.
O convite a Lobão, que apoiou Bolsonaro e claramente se arrependeu, seria um belo exemplo de reconciliação, até um chamego para boa parte da opinião pública.
“Contraditório vagabundo”
Mas mesmo com esse arrependimento todo, os dois artistas que recusaram a participação sentiram um certo cheirinho de inconstância nisso tudo. E temiam, com certa razão, que parte do público os compreendesse como concordando com todo esse vai-e-volta ideológico do compositor.
O que mercadologicamente e eticamente, não seria interessante.
Procurada, a TV Globo desconversa. Mas o clima, evidentemente, ficou pesado. E há uma chance pequena de outro artista querer gravar a música de Lobão, sobretudo depois desse quiproquó.
A notícia para mais ou menos por aí. Mas estamos em ano de eleição, e eu, como bela tuiteira que sou, fui dar uma olhada na tal opinião pública.
“Dedo na Ferida”
Usuários das redes sociais num debate saudável | Imagem: British Library/Unsplash
O caos foi instaurado. Toda a polarização política que acompanhamos nos últimos anos simplesmente se transferiu para essa história. Aquele fla-flu de ano eleitoral, que agora é ainda mais potente graças (ou desgraças) às redes sociais.
Atenção: todas as frases a seguir são reais, mantendo as grafias das postagens originais. Suprimimos o nome para preservar a identidade de seus autores.
Há os que ficaram contra a decisão dos artistas. Um dos tuítes é bem direto: “Quem é Iza e Emicida perto de Lobão??? Fico vendo esses cantorzinhos de meia tigela sem o mínimo profissionalismo por conta de opções políticas e no caso destes, deixar de cantar uma música do Lobão que é tema de novela,é a burrice multiplicada por dez”.
Outros, ignoram o posicionamento dos dois cantores: “A verdade é que eles nem ligam pra política, isso é pra ganhar visibilidade na mídia”. Ok. Uma coisa que se vê muito nas redes é liberdade de opinião, regada rigorosamente com falta de conhecimento.
Alguns, partiram em defesa: “Eles estão certíssimos! Não consigo desvincular o autor da obra e, sinceramente, eu tento não comprar ou contratar nada de bolsominion. Porque daria essa moral a quem odeia a mim e a tudo o que acredito?! Parabéns pela atitude, o primeiro papel de todo artista é o de cidadão!”.
“Sem filtro”
Outro tuíte foi específico, elucubrando não apenas sobre o caso, como cobrou toda a classe artística: “Não existe artista de direita. Primeiro: para ser artista é preciso antes ser humano. Segundo, quem se autointitula artista e é de direita não entendeu o conceito de arte.”
O tuíte acima foi rechaçado rapidamente por: “não existe é artista sem boquinha do governo”. Veio a tréplica: “Concordo! Pra ser artista tem que viver fora da realidade e ser fora da realidade é ser de Esquerda”. Seguido pela… bem… quadréplica? “pra ser artista, precisa ser humano, e não é possível ser humano e ser de direita”.
O debate (ou embate) continuou correndo solto. Lá pelas tantas, uma voz conciliatória: “Que bobagem! Não concordo com todos os posicionamentos políticos deles e nem por isso deixo de admirá-los e gostar de sua arte. O momento é de união, reconciliação, parceria contra o obscurantismo. Vixe!”.
Quando eu achava que os ânimos iriam arrefecer, apareceu um “Nem tudo é sobre dinheiro”. Que faz muito sentido. E nem merecia tomar a bolachada que seguiu: “Pessoas que dizem isso nunca tiveram a falta absoluta dele”.
“Brisa”
Já quase desistindo de acompanhar esse UFC literário, encontrei um comentário que começou muito bem, em alto nível; descambando em seguida para o melhor estilo quinta série: “Podem escolher Cartola, Elza Soares, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Os Tincoãs, Nação Zumbi… temos a mais incrível e diversificada música do mundo! Quem precisa do Lobobão??????? Grobosta!!”.
Desliguei o computador e fui dormir. Esse caso de Lobão vs. IZA vs. Emicida vs. Globo é só um lampejo do que deveremos ver, ouvir e ler nos próximos meses. Teremos uma campanha eleitoral que colocará à prova fígados, estômagos, cérebros e intestinos. E a coisa tenderá a ficar muito desagradável na internet.
Eu volto. Sem xingar o amiguinho.
* Os intertítulos desta reportagem são títulos de canções de Emicida e IZA. E caíram como uma luva. De pelica.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.