Vidas Não Vividas
O carro apaga em meio ao pico do transito da cidade numa rua movimentada, onde todos voltam de seus empregos às sete da noite. Eu encosto o carro do lado da calçada pra não atrapalhar o progresso dos outros carros. Isso não acontecia há um bom tempo.
Na calçada, os pedrestres que passam são apenas mulheres, e não acho que elas tenham força o suficiente pra me ajudar a dar um empurrãozinho no carro. Dou um sinal com a mão para que alguém pare. Um Fiat Argo para. Pergunto ao motorista se ele poderia me ajudar com o carro. Ele diz que sim e estaciona seu veículo.
Ele está lá atrás. Eu giro a chave e aviso que vou acelerar e nesse momento é só ele empurrar o carro. Na primeira tentativa, nada. Os carros que vem atrás começam a buzinar. O sinal agora está vermelho. De novo. Segundos antes do sinal abrir eu tento de novo e o cara começa a empurrar. O sinal abre e eu piso no acelerador. O carro pega. Dou um beleza pro cara com o braço pra fora da janela e buzino. Sigo meu caminho.
Na cama, não consigo dormir, mesmo cansado e estressado, a cabeça fervilha com pensamentos. E se eu pudesse escolher ser outra pessoa? E se eu tivesse a vida do meu vizinho? Ele tem uma casa maior, um carro melhor e até uma mulher mais bonita e gostosa. O trabalho dele. Ou quem sabe a vida do Gustavo Lima? Ou do Wesley Safadão? Caio Castro? Cauã Reymond? Tom Cruise? Brad Pitt? Se eu acordasse sendo outra pessoa...
Na manhã seguinte, meu café da manhã foi o mesmo de sempre. De casa para o trabalho passar o dia naquele inferno. Acho que até o verdadeiro inferno seria mais aconchegante. Meu chefe parecia que me odiava. Só para me deixar mais estressado, dizia, de última hora, que teria reunião. E chegaria tarde em casa. O trânsito estaria mais calmo. O carro não apagou. A noite, praticamente foi a mesma da noite passada.
Eu acordo por causa do celular tocando. Estico o braço e desligo o despertador programado para tocar às oito horas. Estou atrasado! Levanto e dou uma olhada ao redor. O quarto está diferente. É maior, há um quadro na parede acima da cama, uma TV na parede oposta à do quadro, um enorme guarda-roupa e uma janela em outra parede. A minha mulher ao meu lado ainda está dormindo, está de costas para mim. Pareço estar em outra casa. Tem uma suíte. Me levanto e vou até ela. Me olho no espelho e, eu estou diferente. Cabelos macios, barba feita e minha pele está lisa, quase sem rugas. Estou mais jovem?!
Quando estou saindo, a mulher está se virando. Não é a MINHA mulher. Espera. Eu a reconheço. Eu a conheci na universidade. Era uma moça loira dos olhos verdes com um corpo de belas curvas. Chegamos a conversar algumas vezes, e sempre gostei dela. Nunca a convidei para sair porque achava que ela recusaria. Muita areia pro meu caminhão. É Sara! Ainda me lembro.
"Bom dia, amor."
"Onde estou?"
"Ué, em casa, amor."
"Por que não vem deitar mais um pouco?! É sábado!"
A minha vida está diferente. Esta é a vida que eu não tive?! Logo depois de reprovar na faculdade de engenharia, eu perdi contato com todos. Volto para cama ao lado de Sara.
"Então, hoje podemos sair para algum lugar, o que acha? Vamos deixar as crianças com a minha mãe e sair só nós dois!"
Crianças?!
"Nosso aniversário de casamento, hoje. Ou você se esqueceu?"
"Posso perguntar uma coisa?"
"Claro, amor."
"Eu estou sonhando?"
"Como assim?"
"Você é a Sara, né?"
Ela dá uma risada de deboche.
"Cê tá brincando?!"
"Não, é que eu tive um sonho estranho!"
"Então me conta, amor. O que te deixou assim?"
Antes de eu começar a contar as crianças entram no quarto correndo. Um casal. Elas pulam na cama e nos abraçam "Papai!".
"Dormiram bem?", pergunto.
"Sim, papai.", respondem simultaneamente.
Não sei o nome das crianças e nem a idade.
Mas todos felizes e sorrindo. Diria que parece uma família de comercial de TV.
Sara dá a ideia das crianças trocarem os pijamas e descer para tomar o café da manhã. As crianças saem correndo. Sara me olha.
"Por que não me conta desse sonho à noite?"
Fiz que sim com a cabeça e ela rapidamente, com seu pijama sexy, sai da cama para se trocar. Ela estava ainda mais bonita do que quando a conheci. Eu fiquei a observando enquanto se trocava.
"Hoje depois do jantar, quem sabe...", ela disse me olhando com um sorriso de canto, "Não vai se trocar?"
"Vou."
Me levanto e procuro alguma roupa para vestir.
A mesa da cozinha está coberta pelo café da manhã. Pães, bolos, café, suco, pratos, talheres e copos. Nos sentamos em lados opostos. Eu em uma ponta e Sara em outra, e as crianças também em lados opostos. Havia uma empregada e acho que ela fez o café da manhã. Pergunto se ela já tomou o café da manhã e se não quer se juntar a nós para comer. Ela diz que não e que já havia tomado o café da manhã mais cedo. Pra mim estava tudo muito estranho. O que havia acontecido noite passada? Eu trabalhava com o que para ter uma casa dessas? Não queria que Sara achasse que eu estava louco. Eu precisava fazer perguntas sutis.
Havia dois carros na garagem! Uma Range Rover e um HRV. A chave que eu peguei era da Range Rover. Eu resolvi dar uma volta na vizinhança para ver se eu reconhecia o lugar. Eu moro num condomínio de luxo da cidade. No que eu trabalhava não importava se fosse para ter uma vida dessas. Saindo do condomínio eu rodei até o shopping. Eu poderia comprar algum presente para Sara, já que era nosso aniversário de casamento. Eu saí de casa apenas com uma camiseta, bermuda e chinelo. No bolso, eu carregava o celular e a carteira. No celular havia um aplicativo do banco. Cinco dígitos. Pouco mais de trinta mil reais e, já havia gastado boa parte, além das contas.
Eu fui à loja feminina mais cara do shopping e escolhi algo que Sara pudesse gostar. Um vestido, sapato, bolsas, o que eu poderia escolher. Não conhecia muito ela, até porque eu acordei do lado dela hoje. Melhor comprar tudo. Ela vai gostar de alguma coisa.
Aquela noite chegou. Fomos à um restaurante caro da parte chique da cidade. Um restaurante aconchegante, diversas mesas, garçons indo e voltando entregando os pratos caros e com pouco conteúdo aos clientes. Eu iria contar à Sara, o sonho estranho que eu tive noite passada. Conversavámos sobre outras coisas até que Sara se lembrou de perguntar sobre o sonho.
"E quanto ao sonho que cê teve?"
Eu contei que vivia outra vida trabalhando doze horas por dia e que não era ela que era minha esposa, era outra pessoa. Tinha um carro caindo aos pedaços e não tinha filhos. Completamente o contrário da vida que levavámos. Eu odiava aquela vida.
"Ainda bem que foi apenas um sonho, amor."
"Amor, preciso te contar uma coisa: Eu acordei esta manhã com amnésia, não consigo me lembrar nem do nome dos nossos filhos. Eu não sei porque isso aconteceu. Esse sonho... Parece que eu realmente vivi tudo isso. A única coisa de que eu me lembrei, foi de quem era você!"
"Tem andado meio estressado?"
"Não!"
"Preocupado com alguma coisa?"
"Não!"
"Se lembra de ter batido com a cabeça em algum lugar?"
"Não. Mas..."
"Mas o quê?"
"Você precisa ir à um médico!"
"Sim, mas antes me conte. Talvez eu me lembre."
"Nós nos conhecemos na universidade, um dia você me chamou pra sair. Você hesitou mas acabou me contando seus planos para o futuro. Seus sonhos e tudo mais. Você se tornou um Cirurgião Plástico e eu Advogada. Namoramos, casamos e tivemos dois filhos: Bernardo de 6 anos e Sofia de 4.
"Agora me lembro."
"Que bom, amor. Mudando de assunto, tu viu a tragédia que aconteceu hoje que passou nos noticiários?"
"Não, não vi. O que aconteceu?"
"Um casal morreu hoje quando a casa deles explodiu porque deixaram o piloto do fogão ligado. Fazia alguns dias que estava assim, a polícia falou. E como os dois trabalham e chegam tarde em casa, nem fazem questão de abrir as janelas. O gás preencheu a casa toda. Apenas jantam e vão dormir. Depois disso, o compressor na base da geladeira ligou. Boom.", ela diz fazendo gestos com as mãos.
"Sério?"
"É. E a foto do homem que mostrou na TV era parecido com você. Igualzinho."
"A mesma rotina do sonho que eu te contei?"
"Sim."
Este artigo foi escrito por Marcos Araújo e publicado originalmente em Prensa.li.