Violência, relações líquidas, e tensão em Round 6
A série Round 6, lançada em 17 de setembro, além de deixar os telespectadores aflitos e apreensivos, ainda levanta questionamentos a respeito de caráter e ganância.
A polêmica produção sul-coreana, hoje é a série mais assistida da Netflix e já coleciona fãs e críticos pelo mundo.
De maneira geral, a série reúne conceitos e aspectos já vistos anteriormente em outras produções.
A semelhança mais evidente é com a saga Jogos Vorazes, mas também não é difícil identificarmos aspectos de produções voltadas ao terror e suspense.
E apesar da famosa frase de Oscar Wilde - “A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”, vale observarmos características e traços sociais da obra, inclusive a partir de causos e eventos da nossa realidade.
Resumindo, qual é o momento em que a linha do que pode ser considerado entretenimento é cruzada, e personas de valor e moral questionáveis se tornam notórias na sociedade?
Questionamentos e ganância (ATENÇÃO - CONTÉM SPOILER)
A nova série da Netflix retrata uma espécie de reality show, onde os confinados batalham por uma premiação em dinheiro, e a cada rodada alguns participantes são eliminados.
O jogo é composto por seis rodadas baseadas em brincadeiras infantis típicas da Coreia do Sul.
Os termos para a participação aparentemente são simples: a pessoa precisa ser selecionada por uma espécie de olheiro, aceitar participar do jogo mesmo sem conhecimento total sobre as regras, apenas sob a promessa da recompensa ao vencedor.
Em suma, não existe um perfil padrão dentre os participantes, homens e mulheres, de executivos a ladrões, de jovens até idosos.
O “batalhar” é levado ao pé da letra, visto que os eliminados de cada rodada são brutalmente assassinados. Os responsáveis pelas mortes são lacaios dos idealizadores do jogo. Estes desfilam pelos campos de disputa exibindo armas de fogo, mascarados e de traje vermelho.
Podemos notar o nível de agressividade do jogo ao ponto que os primeiros participantes vão sendo desclassificados. Sem pudor algum, estes são mortos um a um alvejados por balas.
Com o passar dos jogos, podemos notar como as relações entre as pessoas vão se formando de maneira gananciosa e interesseira.
Os que se consideram mais fortes se reúnem em um canto, os que apostam na inteligência em outro, e assim por diante.
Somos apenas números!?
Foto: Reprodução/Netflix
Antes de qualquer análise esmiuçada, ou aprofundamento, vamos ao primeiro aspecto que chama atenção na série: a identidade de cada jogador.
Não é novidade para ninguém que, para nós do ocidente, memorizar os nomes sul coreanos seria algo complicado.
Todavia, havemos de concordar que não seria apenas este o único motivo de cada confinado carregar o seu número de identificação nas roupas, ao invés do próprio nome.
Coincidência, ironia, ou crítica sermos apenas números perante os “maiores” e detentores de poder? Seja ele bélico, social ou monetário.
Colocando assim todos no mesmo parâmetro de desigualdade e inferioridade. E eliminando o pouco que um menos afortunado tem: a sua identidade.
Ao todo são 456 participantes no início da disputa, sendo que o detentor da identificação 456, Gi-Hun (Lee Jung-jae), é o personagem principal da série.
Um pai divorciado, ausente da criação de sua filha, que mora e depende financeiramente da própria mãe.
Bem como o 456, cada um dos integrantes têm as suas particularidades e motivos para participarem deste reality sombrio.
O participante 001, Oh Il-nam (Oh-Young-soo) representa a figura mais velha do jogo. Já com problemas de saúde, e próximo de morrer, ele se aproxima e faz amizade com 456, oferecendo experiência em troca de parceria e segurança.
O jogador 218, Cho Sang-woo (Park Hae Soo), apesar de muita antipatia, também se junta aos dois. Um empresário falido, procurado pela polícia por fraudes em sua antiga empresa, e pela dimensão das suas dívidas
Por fim, os jogadores 067, Abdul Ali (Anupam Tripathi), e 199, Kang Sae-byeok (Jung Ho-yeon), uma jovem imigrante ilegal norte coreana, e um rapaz paquistanês. Ambos buscando melhores condições de vida na Coréia do Sul.
No decorrer dos episódios, um questionamento surge, não só entre os participantes do jogo, mas também em quem assiste.
Até que ponto a vida das pessoas tem valor e importância?
Pois facilmente podemos notar como a existência de quem é menos favorecido pode ser descartada a troco de nada ou muito pouco.
Caráter e liquidez!
Outro aspecto curioso, que se você não prestar bem atenção pode passar batido, é a forma como as relações humanas são construídas e mantidas.
O filósofo Zygmunt Bauman é dono de uma teoria sobre as relações humanas nos tempos modernos, apresentada na obra Modernidade Líquida, facilmente identificável em Round 6.
De maneira resumida, Bauman explica que as relações interpessoais estão ficando cada vez mais rasas e até mesmo descartáveis.
De modo que, a criação de vínculos e laços, podem e são, construídos e desconstruídos em pouquíssimo tempo.
Inclusive, com o advento da internet, criar novos “amigos” e “desfazer amizades”, tornou-se uma missão facilmente resolvida com meia dúzia de cliques.
Percebemos que por conta dos interesses de cada jogador, “amizades” são criadas exclusivamente com a finalidade de se auto favorecer, e nada mais.
Bem como Bauman dizia, com o decorrer dos Rounds tais “amizades” escorrem pelos dedos, ainda mais com a sequência de eliminados, e o fatídico fim destes participantes.
O jovem paquistanês agrega força física ao grupo em que está inserido, o empresário estratégia e inteligência, o idoso experiência, e assim sucessivamente.
Qual a probabilidade de pessoas de personalidades e aspectos tão distintos se unirem, sem que haja por trás interesse em algo que o próximo possa te oferecer?
Abuso e manipulação
Qual a vantagem de você manter proximidade e laços afetivos com um delinquente, bandido ou semelhante?
Ainda mais quando tal relação é estabelecida em meio a ofensas, agressões, e outros tipos de abuso.
Neste momento conhecemos um pouco mais da 212, Han Mi-nyeo (Kim Joo-ryeong), uma mulher que se sujeita a situações como essas, em troca da proteção oferecida por 101, Jang Deok-su (Heo Sung-tae).
Um ladrão participante do jogo, que a mantém próxima por interesses individuais, e utiliza de discursos ofensivos e abusivos.
Seria esta uma simples construção de roteiros como qualquer outra, ou eventualmente um espelho de situações que sabemos que existem na nossa sociedade?
No ano de 2017, o participante Marcos foi expulso do Big Brother Brasil após adotar uma postura controladora e agressiva frente a participante Emilly.
Na época, a própria Rede Globo decidiu desligar o participante do reality.
Em depoimento à polícia, o médico disse que realmente se exaltou em determinados momentos, todavia nunca teve a intenção de agredir física ou emocionalmente a participante com quem mantinha relacionamento dentro da casa.
Assim como na décima sétima edição do BBB, a personagem do seriado também se demonstra fragilizada após o rompimento do vínculo com a figura agressiva.
Obviamente, por tratar-se de uma obra fantasiosa, em pouco tempo a personagem conseguiu superar os traumas causados por tal relação, o que de certo não reflete com exatidão o que realmente ocorre na vida real.
Por fim, Emilly permaneceu confinada, sofreu com a eliminação de Marcos, todavia foi a vencedora do reality naquela edição, e ganhou o prêmio em dinheiro.
Infelizmente, a sua vivência confinada acabou exemplificando e expondo a realidade de muitas pessoas que também vivem relacionamentos abusivos, principalmente mulheres.
Sadismo por entretenimento
Foto: Reprodução/Rede Globo
Os reality shows com que temos contato são forrados de provas e atividades envolvendo os participantes, obviamente nenhuma delas expondo os participantes a riscos claros.
Contudo, em diversos momentos os envolvidos precisam usar de força física, estratégias ou técnicas para vencer.
Assim como nos reality shows, as regras de Round 6 são apresentadas aos jogadores por alguém externo ao jogo.
Em Round 6 notamos a presença de personalidades secretas, que além de gostarem da matança e tortura a qual os jogadores são submetidos, financiam o jogo.
Logo, temos um cenário onde pessoas socialmente inferiores são postas em ringues para se digladiar, enquanto a elite além de se deleitar, incentiva e patrocina.
Na edição de número dezoito do Big Brother Brasil, Ana Clara e Kaysar ficaram cerca de 43 horas praticamente imóveis, sem água, sem comida, e parados em plataformas suspensas.
A prova era patrocinada por uma marca de veículos, logo, os participantes se submeteram a tais condições para garantir mais uma semana de permanência no reality, em um jogo idealizado para promover a imagem de um produto.
Obviamente, o ambiente do BBB é totalmente controlado, e com baixíssimos riscos.
Entretanto, os telespectadores acompanharam durante quase dois dias, duas pessoas que estavam cansadas, com fome, sede, e eventualmente com alguma dor ou desconforto.
E como se não bastasse, acompanhando e consumindo a publicidade da marca que patrocinou tal evento.
Seria Round 6 um reflexo utópico da realidade, ou uma simples representação teatral de um jogo maquiavélico?
Será que teremos algo ainda mais espantoso para uma segunda temporada, ou uma eventual reviravolta na estrutura e forma do jogo?
Este artigo foi escrito por Filipe Mello e publicado originalmente em Prensa.li.