Você já ouviu o Cavaleiro das Trevas?
A pergunta é estranha. Afinal, o Homem Morcego não tem por hábito sair por aí cantando, recitando ou mesmo fazendo discurso em praça pública. Nem mesmo nos tempos em que era de bom tom fazer uma aglomeração em praça pública.
O Cavaleiro das Trevas (ou se preferir no original, The Dark Knight), produção de 2008 dirigida por Christopher Nolan tem vários predicados, entre elas o filme de super-herói com maior bilheteria da história.
Conta com a atuação absoluta de Heath Ledger no papel de Coringa, arrebatando um sem-número de prêmios, apesar de Ledger infelizmente não poder ter aproveitado a fama como poderia. Então que raios de título é esse, você pergunta?
Você pergunta, e nós respondemos, leitor. O Cavaleiro das Trevas tem uma trilha sonora tão boa, mas tão boa, tão entranhada na história que você nem chega a perceber. E esse é o grande encanto dela.
Uma dupla do barulho
Não chega a ser como Contatos Imediatos do Terceiro Grau, de Spielberg, ou O Homem Que Sabia Demais, de Hitchcock, que iremos abordar futuramente, mas é uma trilha que faz seu trabalho tão bem feito que se destaca da multidão.
A música original do filme, composta por uma dupla de campeões, começando pelo alemão Hans Zimmer (responsável entre outras coisas pelas belíssimas trilhas de O Código DaVinci, Piratas do Caribe, Gladiador, Up - Altas Aventuras, e até mesmo Kung Fu Panda).
Sua parceria é com o estadunidense James Newton Howard (de Sexto Sentido, Planeta do Tesouro, King Kong, Jogos Vorazes e mais recentemente Animais Fantásticos e Onde Habitam).
Uma união que gerou uma obra tão poderosa que se esgueira durante as ruas de Gotham City durante todo o filme.
Zimmer e Howard já tinham trabalhado no filme anterior da franquia, Batman Begins, pontuado por uma música forte, sombria, angustiante e até porque não dizer, assustadora. O clima necessário para essa abordagem mais séria do morcegão. Mas em O Cavaleiro das Trevas, a dupla expandiu seus limites.
Ideias fora da curva da partitura
Contrariando a regra de qualquer franquia bem-sucedida do cinema, o tema principal do personagem praticamente não é ouvido com frequência durante o filme. Pode observar. Segundo o IMDb, maior autoridade em dados aleatórios sobre cinema e televisão, o tema do herói é ouvido exatas duas vezes durante a produção. Uma estratégia no mínimo arriscada.
O que se ouve, com muito mais frequência, é o tema do antagonista da história, o famigerado palhaço do crime, sim, ele, o Coringa. O som perturbador é ouvido durante boa parte do filme, e causa um incômodo indisfarçável para o espectador.
Dá pra sentir medo do personagem, vontade de sair do cinema, desligar o DVD, e ao mesmo tempo querer saber o que acontecerá na cena seguinte. E como falamos em dados aleatórios, saiba que o tema (com nada menos que nove minutos) consiste de apenas duas notas, ré e dó.
Minimalista? Você ainda não viu (ou ouviu nada), no que tange a esse aspecto do filme. Ré e dó, que não por acaso, musicalmente são representadas pelas letras D e C, formando “DC”, o nome da editora que publica as histórias de Batman desde 1939.
A música que acompanha o Coringa faz um “du-du” desagradável (perdoem-me os Dudus que porventura estejam lendo o artigo), fazendo o espectador querer que a situação se resolva rápido, porque o clima é angustiante e a presença do antagonista incomoda como tem de ser. Mas nem de longe este é o ponto alto dessa trilha.
O samba do palhaço doido
Achou pouco uma música com duas notas? E se contar que a melhor trilha desse filme, a que separa O Cavaleiro das Trevas da maioria dos filmes, tem apenas uma nota musical? Hein? Hein?
Isso mesmo. Assista à cena da festa onde o Coringa, de maneira nada sutil, ameaça aos convidados, especialmente ao interesse amoroso do morcegão, a promotora Rachel Dawes.
A trilha aqui é apenas uma, somente UMA simples nota musical, executada em um violino, se estendendo num crescendo horripilante, enquanto o vilão conta sua história de vida; no último segundo, quando você provavelmente não está respirando, o velho e bom Batman irrompe em cena e acaba com a festa, literalmente.
Aquela única nota se estende por cerca de um minuto, mas a sensação de quem acompanha a cena é que se passaram umas duas horas, e você se sente tão ameaçado quanto os participantes da festinha. É de arrepiar as profundezas da alma do espectador mais são.
Falando em sanidade, outro fato curioso sobre esse filme: o compositor Hans Zimmer desenvolveu algumas partes da trilha utilizando instrumentos bastante prosaicos, como piano e guitarra.
O detalhe é que ele tocava diretamente nas cordas de aço do piano usando lâminas de barbear, e as cordas da guitarra com pedaços de metal. Coisa que não se vê todo dia…
Santa preservação, Batman!
A importância desta produção pode ser medida no fato em que ela é uma das duas únicas do gênero a integrar a seletíssima lista da National Film Preservation Board, que escolhe filmes para preservação “eterna”, por sua importância cultural, estética e histórica (o outro filme do gênero preservado pela instituição é Superman - O Filme, de 1978).
O Cavaleiro das Trevas está disponível em mais de um serviço de streaming presente no Brasil, e também é facilmente encontrado nas poucas (infelizmente) lojas que comercializam DVDs.
Invista um tiquinho do seu tempo e veja, e principalmente ouça esse filme. Não vai se arrepender. Talvez passe a sentir uma certa perturbação na presença de palhaços, mas aí já é outra história!
Imagem de capa - Por quê tão sério? - Fotografierende / Pexels
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.