Volta ao mundo em duas rodas
O final do século XIX foi uma época revolucionária para as bicicletas, o transporte se modernizou e pedalar se tornou mais fácil e acessível para todas as classes sociais. O mundo rendeu-se à liberdade proporcionada por elas, transformando sociedades, urbanismos e condição de milhares de pessoas.
A liberdade que o meio de transporte trouxe também impactou o feminismo, a bicicleta “ajudou a emancipar as mulheres mais do que qualquer coisa no mundo”, segundo as palavras da sufragista Susan B. Anthony. Para as mulheres, pedalar era uma forma independente de transporte e também foi importante para a moda feminina. As saias longas e vestidos pesados deram lugar às ceroulas e saias mais leves e amplas.
No centro disso tudo existia uma grande mulher, à frente de seu tempo, que desejava inspirar e mostrar ao mundo que nós, como mulheres, podemos fazer tudo o que desejarmos. Seu nome é Annie Cohen Kopchovsky, uma jovem jornalista imigrante da Letônia, mais conhecida como Annie Londonderry.
Uma aposta
Para entender sua história, vamos voltar um pouco no tempo.
O ano era 1894, dois milionários discutiam em um clube de Boston. Um deles era a favor do direito das mulheres, e acreditava que elas poderiam fazer qualquer coisa que um homem fizesse. O outro não. A discussão acabou levando os dois homens à uma aposta de 10 mil dólares, em que uma mulher não era capaz de conquistar o mesmo feito de Paul Jones. Ou seja, uma volta ao mundo de bicicleta.
E não era só isso, a escolhida deveria completar a façanha em apenas 15 meses, além de ganhar a quantia de 5 mil dólares no caminho. Não se sabe ao certo porque Annie foi eleita para o desafio, uma vez que ela era casada, mãe de três filhos e curiosamente mal sabia pedalar. O porquê de aceitar tal aposta também é incerto. Quiçá, Annie queria provar, mais do que tudo, sua capacidade como mulher de se defender no mundo.
No dia 25 de junho daquele mesmo ano, a garota, que pesava menos de 50 quilos e media 1,60 metro, vestiu uma saia longa, um espartilho apertado e uma blusa de gola alta - como o código de vestimenta exigia na época. Separou somente uma muda de roupas em sua bagagem e um revólver para se proteger.
Antes de partir, a jovem ciclista mudou seu nome para Annie Londonderry, depois que uma empresa de água lhe ofereceu 100 dólares de patrocínio, se carregasse uma placa da marca na bicicleta e adotasse o seu nome, como posteriormente ficou conhecida.
No dia de sua partida, ela ficou diante de uma multidão de quinhentas pessoas, e anunciou que circularia o mundo em duas rodas. Subiu em sua pesada bicicleta e pedalou para longe - deixando para trás, temporariamente e escandalosamente sua família -, rumo “a jornada mais extraordinária já feita por uma mulher”, como um jornal nova iorquino intitulou 15 meses depois.
Viagem ao redor do mundo
Nos três primeiros meses percorrendo o país, a jovem de 24 anos percebeu que seria impossível continuar seguindo viagem com sua bicicleta de 20 quilos, sem contar seu vestido de tecidos pesados. Portanto, trocou o modelo de sua bicicleta por uma masculina, que tinha a metade do peso da anterior, e seus trajes para roupas masculinas. Assim, viajou o mundo seguindo seu próprio roteiro.
Annie pedalou pelos trilhos norte-americanos - aproveitando-se dos benefícios oferecidos pela rede ferroviária dos EUA -, chegando do outro lado do país. Embarcou em um navio no porto de Nova York em direção à costa norte da França, desembarcando em dezembro daquele mesmo ano em terras francesas. Annie pedalou até Marselha, levando duas semanas para completar o trajeto devido ao mau tempo.
Como os termos da aposta não estipulava quantos quilômetros ela deveria percorrer exatamente, ela permitiu-se utilizar outros meios para atravessar longas distâncias e cruzar o mar. Dessa forma, Annie navega de porto em porto, pedalando pelas estradas de cada cidade que visitava. Em tempo bom, ela chegava a pedalar 16 km por hora.
Annie conheceu cidades da Europa e Ásia Oriental, com paradas no Egito e Cingapura, seguindo para China e Japão. Em cada um desses lugares, ela pegava a assinatura do cônsul americano, como prova que esteve lá.
Por fim, retornou aos Estados Unidos em março do ano seguinte, cruzando os estados do Sudoeste e Centro-Oeste americanos pelos próximos seis meses. Alcançando finalmente Chicago em 12 de setembro de 1895. Apesar de todas as críticas, Annie venceu a aposta, provando ser uma excelente ciclista.
E contrariando todos que a menosprezavam, venceu corridas deixando homens para trás comendo poeira. Annie, merecidamente, ganhou fama e reconhecimento como a primeira mulher a realizar tal feito.
Financiando sua viagem
A jovem ciclista também foi capaz de conseguir os 5 mil dólares que a aposta determinava. Durante sua jornada, ela encontrou uma maneira de conseguir a quantia de uma forma tão polêmica quanto seus trajes: transformou-se em um outdoor ambulante.
Annie, além de mudar seu nome, alugou espaços em seu corpo para fazer propaganda. Conseguindo assim, diversos contratos de publicidade de centenas de dólares.
Para completar seu projeto de financiamento, ela passou a vender por onde ia, fotos promocionais, souvenirs, lenços de seda e autógrafos. Annie também gostava de contar histórias sobre suas aventuras, e também sobre sua vida, à jornalistas e multidões de pessoas.
No entanto, ela costumava fantasiar suas histórias e na maioria das vezes mentia. Como quando contou que era órfã, herdeira rica, estudou medicina e advocacia, caçou tigres na Índia, foi ferida numa guerra, entre outras aventuras.
Retorno para casa
Após seu retorno à terra do Tio Sam, Annie mudou-se com a família para Nova York e virou jornalista do New York World. Quando ela escreveu sobre sua volta ao mundo, afirmou: “sou uma jornalista e uma nova mulher, se é esse o termo de que posso fazer qualquer coisa que um homem pode.”
A jovem foi considerada um exemplo a todas as mulheres que admiravam e se inspiravam em sua coragem e capacidade de enfrentar todos os valores da época.
Annie Londonderry faleceu em 1947, e apesar de Hollywood ainda não ter descoberto sua história, o que daria um filme muito interessante, ou até mesmo uma série, inspirado em seu feito, é possível ler sobre sua jornada no livro “Around The World On Two Wheels”. O livro escrito por seu sobrinho-neto Peter Zheutlin, narra sua viagem sobre duas rodas.
Sua fama pode ter sido apagada ao passar dos anos, porém, sem dúvidas, Annie ganhou a imortalidade ao conquistar o título de primeira mulher a completar uma volta ao mundo de bicicleta.
Imagem de capa - Annie Londonderry (Foto: World Bicycle Relief)
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Este artigo foi escrito por Bruna da Cruz Souza e publicado originalmente em Prensa.li.