Vote em LGBTs para viver papéis LGBTs nas telas e palcos. Questão de vivência
Eddie Redmayne reacendeu a discussão sobre pessoas não LGBTs interpretando papéis LGBTs. O ator britânico se mostrou arrependido por sua atuação em A Garota Dinamarquesa, em que viveu Lili Elbe, uma mulher trans do início do século 20. Afirmou ao Sunday Times que, se fosse lhe oferecido hoje, ele não aceitaria o papel por reconhecer que pessoas trans precisam ser interpretadas por pessoas trans.
Redmayne não precisa se autoflagelar, mas admitir que há atrizes e atores trans capazes de encarnar histórias sobre pessoas trans é atestar algo óbvio que a indústria do entretenimento ainda se recusa a encarar. Há uma hegemonia de gente cisgênera em papéis trans. Quase a totalidade. O mesmo ocorre com héteros em papéis homossexuais.
Trata-se de uma reserva de mercado, quebrada aqui e ali, de uns tempos pra cá, com produções como Pose, Veneno, Hollywood e The boys in the band. No grande oceano formado por O segredo de Brokeback Mountain, Meninos não choram, Gaiola das loucas, Transamérica, Priscilla a rainha do deserto, Dallas Buyers Club, e por aí vai, obras onde LGBTs estrelam como personagens LGBTs não enchem uma piscina.
Nada de ojerizar e proibir héteros cis de viver tais personagens. Não há como impedir. Mas é conscientizar. Querem contar as histórias de pessoas LGBTs, lucrar com elas, ganhar prêmios, mas não querem o trabalho delas? Por quê? Acreditam ser um desafio maior que alguém hétero cis assuma o papel e mostre superação de preconceitos para encená-lo? Acham pesado demais que alguém trans se desnude na tela, que algum gay beije outro gay, uma lésbica amando outra não despertaria a libido dos homens na plateia como duas héteros o fazem?
A reserva de mercado que exclui reais LGBTs precisa acabar e produções atuais mostram o motivo:
As pérfidas discriminações sentidas dentro e fora da comunidade LGBTQI+ contadas e interpretadas por nós na série Pose. De maneira forte e autêntica. Nossa maneira de nos acolhermos, de nos divertirmos, de criarmos cultura, de sobrevivermos às violências. Com as nossas caras: trans, gays, bissexuais, latinas, negras, etc.
Veneno é uma série visceral, dolorida e potente. História bem delineada de Cristian Ortiz, mulher trans, de criança a adulta, que traça uma trajetória de sofrimento, sucesso, erros e acertos, com o compromisso de retratar uma protagonista humana maltratada por outros humanos, até quando amada por eles e que maltratou de volta até quem não merecia, por ter a pele da alma inflamada desde sempre. Comovente e revelador como as portas se abrem para outras pessoas por quem precisou arrombar todas para si. O sofrimento das pessoas trans é simplesmente existir em um mundo que faz todo o possível para que elas não existam. E elas contam melhor que qualquer outra.
The boys in the band trata das farpas e marretadas que gays distribuem entre si. Por que nos odiamos tanto assim? E nos agredimos tanto assim? Nos ferroamos tanto? E nos prejudicamos tanto assim? Defesa? Competição? Osmose ou imitação? Um filme sobre como não conseguimos filtrar a opressão externa, reconhecê-la como tóxica para nós, e atiramos a borra venenosa em quem sabemos sofrer tanto quanto nós. Compactuamos com a sociedade preconceituosa e escapamos no cada um por si. O texto e as interpretações de um elenco todo de homossexuais assumidos mostram que o arco-íris, tantas vezes, fica bem longe, inacessível e cinzento.
Ninguém pode contar nossas histórias, doídas, diárias, sexuais, glamurosas, entorpecentes e felizes, melhor que nós mesmos. Sejam de lágrimas ou espumante, de guetos, traumas e enfrentamentos.
Não se trata de impedir quem é de fora de estar no nosso papel. Trata-se de reconhecer que há um direcionamento, quase tido como natural, em escolher os de fora. Como nos dizendo que nos apoiam, querem falar sobre nós, mas não nos querem lá, não confiam no nosso trabalho, melhor não chocar o público. Nem tampouco se trata de renegar o talento artístico de héteros cis.No entanto, quando houver, no mínimo, uma equivalência em oportunidades, a gente conversa sobre capacidade interpretativa.
É nossa a competência de que sorriso, de que olhar, de que expressão, de que malícia, sangramento e queixo erguido imprimir na dose exata, de falar sem palavras, sabendo que os nossos nos entenderão. Nossa competência quanto a nós. A gente que assiste sabe que aquelas pessoas sabem do que estão falando.
Imagens/Divulgação
Este artigo foi escrito por Miguel Rios e publicado originalmente em Prensa.li.