Voto consciente e realidade
Em tempos de eleições majoritárias, o país parece reino encantado. Até 2020, eram quase 148 milhões de eleitores “capacitados” a definir futuros de mais de 212 milhões de pessoas. Considerando-se que o candidato vencedor, via de regra, consegue em média 30% a 40% do eleitorado, é razoável imaginar que menos de 50 milhões de cidadãos resolvem quem vai governar a vida de outros 160 milhões de brasileiros.
É muito encantamento, quase magia. Responsabilidade demais para um povo que ou foge de discussão política como cão mordido por cobra foge de linguiça ou discute política com ideologia semelhante a sotaque: todos têm, mas ninguém acha que tem e diz que quem tem é o vizinho (como dizem os produtores do Meteoro Brasil, Álvaro Borba e Ana Lesnovski).
Infelizmente, em muitos casos - na maioria deles, diga-se -, as ideologias têm a mesma serventia que a dos sotaques. São objeto de chacota por parte de quem acha que seu próprio dialeto é o ideal para o país inteiro.
A cada dois anos, o assunto vai ganhando forma dia a dia depois de uma cervejinha que amargou a goela no bar. Depois de uma reclamaçãozinha sobre um buraco no asfalto, política entra em discussão. Quando se sabe que o filho não teve aula porque a professora usou seu direito de licença a que fazia jus, todos são idealistas.
Votar é essencial
As eleições vão ocorrer daqui a um ano. Com urnas eletrônicas - a despeito do desejo contrário do Planalto atual. Conversas populares sobre o pleito não têm tempo certo para iniciar. Diz-se que o dia ideal para se falar sobre política é o ontem.
Debater política é ainda mais essencial que votar porque é a partir de debates que se chega a nível mínimo de consciência eleitoral. Consciência, aliás, que faz os eleitores desenvolverem percepção hermética do fato em si: descobre-se que é impossível adquirir total consciência quanto ao voto.
A “coisa”, por si, é complexa. Por sê-lo, é autorrejeitável. Ainda assim e talvez por isso mesmo, é essencial. Afinal, é preciso conseguir quórum de mentes sãs num tempo de sociedades líquidas em que opinião é instrumento de destaque de celebridades descerebradas.
Brasileiro Não Sabe Votar...
… e nem sabe que não sabe. A cada dois anos, intensificam-se os xingamentos ora contra os primeiros escalões da política, ora contra os segundos.
Não importam os nomes dos eleitos. O eleitor é sempre o culpado. É culpado tanto pela cerveja amarga e pelo buraco no asfalto quanto pelos milhões dos mensalões e mensalinhos, ora versados em bolsolões e rachadinhas respectivamente..
Todos têm suas verdades sobre tudo. Você, eleitor, tem a sua; Sicrano tem a dele; Beltrano, a sua própria. Em meio a tantas verdades, as mentiras de políticos espertalhões vão se esgueirando pelas beiradas dos olhos dos eleitores e ocupando cargos.
Enquanto isso, a realidade se esgota não na incapacidade do eleitor de vê-la, mas na impossibilidade de vê-la. E são muitas as artimanhas de políticos para criar essa impossibilidade. Muitas e eficazes. A mais premente delas é alimentação de clima de desinteresse.
Desinteresse Planejado
A lista de possibilidades conspiracionistas contra a chamada ordem mundial é longa e ficou maior com o advento da internet. De Et de Varginha de Minas Gerais a arrastões na Linha Amarela no Rio de Janeiro, passando por leitores de DNA dos laboratórios americanos e pelos Illuminati, o mundo parece estar sempre em corda bamba.
Na faculdade de Jornalismo, este articulista levantou algumas vezes a hipótese de haver uma espécie de ação conspiracionista na política brasileira para manter o eleitor afastado de discussões sérias. Quase se sentiu paranoico diante de ataques de docentes e de colegas.
Na mesma época, contudo, leu o texto “10 Estratégias de Manipulação Midiática” de Noam Chomsky pela primeira de dezenas de vezes e a concepção sobre o fato se fortaleceu. Eis três das mais desbravadoras:
Normalizando o anormal
3 - A ESTRATÉGIA DA GRADAÇÃO
Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, basta aplicá-la gradativamente, a conta-gotas, por anos consecutivos. É dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram decência, tantas mudanças que haveriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.
Minimizando a inteligência
5 - DIRIGIR-SE AO PÚBLICO COMO CRIANÇAS DE BAIXA IDADE
A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade, como se o espectador fosse menino de baixa idade. Quanto mais se intente buscar enganar o espectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê? “Se você se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então, em razão da sugestão, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade.
Conspirando veladamente
7 - MANTER O PÚBLICO NA IGNORÂNCIA E NA MEDIOCRIDADE
Fazer que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. “A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as classes inferiores e as classes sociais superiores seja e permaneça impossível para o alcance das classes inferiores.
Há mesmo um movimento planejado para enceguecer o eleitor brasileiro, mas não exatamente conspiracionista. A industrialização da mentira é ação inconsciente mesmo por parte de seus líderes. Estes não se reúnem periodicamente para determinar ações. Apenas são o que são, agem naturalmente. O resultado é estarrecedor.
O TSE Adverte: Voto Inconsciente Faz Mal à Sociedade
De tempos em tempos. O Tribunal Superior Eleitoral move milhões de reais em campanhas de conscientização eleitoral. Peças publicitárias emotivas são concebidas em pranchetas de marketing a fim de que o eleitor finalmente vote em quem conhece de verdade.
Conheça seu Candidato
Vocês, leitora ou leitor, acham isso possível? Não é possível conhecer de verdade nem mesmo o próprio irmão com quem se convive por décadas. Alguns mais radicais diriam que não é possível conhecer de verdade nem a si mesmo.
Mesmo porque aquele candidato que “você conhece de verdade” estará sujeito a conchavos e associações se for eleito. Se não se associar, será apenas um número desconhecido no quadro de representantes do povo. Há muitos nessas condições.
Pesquise o Passado de seu Candidato
Vocês, leitora ou leitor, acham isso possível? “Sim... em tempos de internet, isso é possível”, responderiam alguns.
Imagine-se você como candidato:
Publicaria suas reais intenções?
Divulgaria as falcatruas das quais participou ou das quais pretende participar?
Mostraria fotos longe da família?
Evitaria apanhar no colo o filho do eleitor pobre?
Evitaria fazer promessas milagrosas?
Recusaria altos valores para incentivar sua campanha?
Ou seja, não adiantam tantas pesquisas. “Tá... o candidato pode não divulgar, mas os rivais vão divulgar”, argumentariam outros. Pensemos: campanha política é guerra e em guerra tudo vale, inclusive criar situações vexatórias contra rivais com provas irrefutáveis.
Na Justiça – não só a do Brasil, mas da civilização atual – provas irrefutáveis têm valor ambíguo, dependendo de tempo e de humores de autoridades. Haja vista as grandes falcatruas ao longo da história do mundo.
E quando as tais provas irrefutáveis são tão irrefutáveis que nem a mídia comprada consegue esconder, o candidato já se elegeu, já se locupletou, já se reelegeu antes de ser finalmente condenado.
E 8 anos depois, se candidata novamente. Os Collors, os Sarneys, os Barbalhos e outros muito menos expressivos estão aí.
“Certo... certo... mas a gente pode acompanhar os projetos apresentados pelos políticos”. Claro que pode, mas os textos dos projetos não mostram seus reais motivos e quais acertos foram conduzidos.
Meandros da política, lamaçal sem fim
Há motivos para que a seca no Nordeste resista até a tempos de tecnologia avançadíssima. Seca no Nordeste significa envio e desvio de verba.
Há motivos para que inundações desgracem a vida de muitos brasileiros no Sudeste. Inundações significam publicidade para obras faraônicas.
Há motivos para aquele buraco no asfalto de sua cidade esperar um pouco mais para ser tapado. Buraco tapado no asfalto significa dois ou três pontos mais na pesquisa eleitoral em ano de campanha.
Há motivos para que a Educação no Brasil seja tão deficitária e isso nada têm a ver com falta de verba ou pouco têm a ver com incompetência. Educação de qualidade significa questionamentos (parafraseando Paulo Freire: “seria uma atitude ingênua esperar que os políticos desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse ao eleitorado perceber as mazelas que eles próprios produzem”.
Há motivos para que o eleitor vote inconsciente. Voto inconsciente significa eleitos conscientíssimos da manutenção de suas bravatas e falcatruas.
Portanto, política é essencial; debater é ainda mais. Entretanto, começar a desenvolver consciência de que não é possível votar conscientemente é o primeiro passo para ajustar o conceito de “voto consciente” à realidade.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.