Voto não é esmola! A longa saga de um direito fundamental
Protesto organizado pela Liga da Liberdade Feminina – Museu de Londres
Desde cidades com meia dúzia de vielas às capitais mais populosas do país, política sempre foi feita na rua. Camisas suadas, gritos, discursos. Por entre abraços (falsos ou verdadeiros?) e peregrinações por casas, candidatos buscavam (e buscam) o bem mais precioso em tempos de eleição: o voto.
Vale, até mesmo, comer aquele pastel na feira popular, fazendo cara de quem está gostando e fingindo costume aos transeuntes desatentos.
Pausa para o flash (Fonte: Folha de São Paulo).
A pandemia do Coronavírus, contudo, trouxe uma nova realidade, em diversos aspectos. A aglomeração, antes vista como natural em dias eleitorais, agora é proibida, ou, ao menos, desaconselhada pelos órgãos de saúde. Inclusive, é esta mesma saúde que toma o centro das atenções do eleitorado, haja vista as consequência da covid-19 para a população.
Se, em 2018 e 2020, a internet e os aplicativos móveis de mensagens instantâneas foram ferramentas imprescindíveis para mobilizar (ou enganar, via fake news) a opinião pública, é possível que 2022 seja “o ano” para estratégias do tipo.
Mas, independente das circunstâncias de como o pleito eleitoral deste ano vai ocorrer, permanece algo que conecta o pastel de feira ao whatsapp do eleitor: o voto e sua inerente importância singular na democracia.
Ainda tentando entender o curioso caso do brasileiro médio, vamos buscar explicar por que o ato de votar dessa vez simboliza muito mais do que um mero apertar de botões na urna eletrônica.
Votar, em 2022, será um ato de resistência e liberdade.
Por que votamos?
Foto: iStock
Como disse em texto anterior aqui na coluna, o óbvio precisa ser dito em tempos como os nossos.
Votar não é, e nunca foi, um capricho, um presente, uma commodity. Não é algo que se pede, em protestos "a favor" do governo, para que lhe retirem, sob uma suposta autorização a quem quer que seja o presidente.
E é um paradoxo kafkiano da nossa era do absurdo: pessoas que lutam, numa democracia, pelo direito de não ter direitos, mediante um golpe de estado que prevê fechamento do Congresso e prisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Essa fanfic nem mesmo os militares da Ditadura de 1964-1985 imaginariam em seus mais doces sonhos totalitários.
O voto também não é um privilégio de pessoas esclarecidas, que supostamente mereceriam votar, por ter formação técnica ou notório saber. Acreditar nisso é voltar ao período colonial brasileiro.
Quando a primeira eleição aconteceu na vila de São Vicente, sede da capitania de mesmo nome, convocada por seu donatário, Martim Afonso de Souza, no ano da graça de 1532, apenas os “homens bons” poderiam exercer o poder de escolha. Só neste conceito temos três recortes fundamentais para a compreensão das desigualdades em nosso país: classe, gênero e raça.
Em tempo, explico: “homem bom” era, invariavelmente, uma pessoa de posses (geralmente, dono de propriedades e bens), participante da burocracia civil ou estatal, do sexo masculino e branco (os escravizados eram negros e indígenas, sem direitos civis).
Isso pouco ou nada mudaria até o século XIX. A primeira constituição do Império do Brasil, datada de 1824, tratava do voto como privilégio, vide as regras colocadas para tornar-se um eleitor: homens exclusivamente, maiores de 25 anos (excluídos aí os casados, clérigos, militares e bacharéis formados, que podiam votar com 21 anos) e com uma renda média anual de cem mil réis para as eleições paroquiais, e de duzentos mil réis para as de província.
Os libertos, ex-escravizados que adquiriram a liberdade, podiam votar apenas como eleitores de paróquia. Os investigados pela justiça, com processo ainda em andamento, também poderiam votar nestas mesmas condições.
Estrangeiros naturalizados brasileiros tinham uma peculiaridade: podiam votar, mas não podiam ser candidatos.
Se não existia representatividade no eleitorado, pior entre as candidaturas: os critérios para concorrer a uma vaga na Câmara dos deputados envolviam a obrigação de professar o catolicismo e renda superior a 400 mil réis.
Para o Senado, o cidadão precisaria ser maior de 40 anos, ter renda superior a 800 mil réis e deveria ser “pessoa de saber, capacidade e virtudes, com preferência os que tiverem feito serviços à Pátria" (Constituição de 1824, art. 45, III). Quem não precisaria respeitar nada disso eram os príncipes da Casa Imperial, que recebiam um assento no Senado aos 25 anos de idade.
O curioso é que, durante boa parte desse período, entre 1824 e 1881, analfabetos podiam votar. A Lei Saraiva, responsável pela mudança, ao passo que estabeleceu controle mais rígido do processo eleitoral, seria a responsável pela exclusão dos chamados “iletrados”.
Isso excluía, em grande parte, brasileiros negros, cativos ou libertos, que, além de enfrentar a desigualdade social brutal, sentiam as pesadas consequências da escravização de seus corpos e vidas.
Conquistas esquecidas (ou apagadas?)
A história do voto, no mundo inteiro, é uma narrativa de lutas e conquistas, principalmente por parte dos grupos excluídos do sufrágio. A luta das sufragistas nos EUA e em países da Europa, por exemplo, possui vasta produção bibliográfica e mesmo sucessos cinematográficos: Anjos amordaçados (2004) e As sufragistas (2015) são dois títulos que atestam isso.
No Brasil, esse caminho de luta feminina não foi diferente, mas as narrativas sobre isso parecem ter sido silenciadas na memória coletiva. Há diversas produções acadêmicas, mas pouco material voltado para o grande público. E não é por falta de histórias.
Isabel de Mattos Dillon é um dos nomes. Dentista formada na década de 1880, ela é reconhecida como a primeira mulher a exercer o direito ao voto, ainda no período monárquico. Sua inscrição eleitoral foi feita no Rio Grande do Sul, em 1883, aproveitando-se da brecha da Lei Saraiva de 1881, que dizia em seu artigo 4º que o voto no Brasil poderia ser exercido por todo brasileiro portador de diploma.
Isabel, em foto publicada no jornal A Rua em 1917
“São considerados como tendo a renda legal, independentemente de prova:
X. Os habilitados com diplomas scientificos ou litterarios de qualquer faculdade, academia, escola ou instituto nacional ou estrangeiro, legalmente reconhecidos.”
Mesmo tendo seu pedido indeferido pelo juiz municipal titular José Vieira da Cunha em 1886, sob a justificativa de que “a qualificação das mulheres não foi cogitada pela legislação em vigor”, Isabel recorreria, adquirindo o título por meio de decisão do juiz federal substituto José Lomelino de Drummond.
Segundo a própria Isabel, em entrevista ao jornal A Lanterna, de 1917, ela exerceu o direito ao voto nas eleições para deputado estadual do Rio Grande do Sul em 1887.
A luta dela, que recorreu à Justiça para votar (Isabel concorreria, inclusive, à deputada pela Bahia, em 1891) daria fôlego para novas gerações de sufragistas, lideradas por Leolinda Daltro e Bertha Lutz.
Feminista, indigenista e professora, Leolinda fez parte da criação do Partido Republicano Feminino, ainda na década de 1910, e organizou protestos pela emancipação feminina no Brasil, como a célebre passeata de 1917.
Lutz liderou a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher (LEIM). Dois anos depois, essa associação teve seu nome modificado para Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.
Presente na delegação brasileira que foi à Conferência de São Francisco, da ONU, em 1945, ela ficaria marcada na história pela luta para incluir menções sobre igualdade de gênero no texto do documento final do evento.
Em 1927, o Rio Grande do Norte tornou-se pioneiro ao aprovar lei que garantia o direito ao voto das mulheres. No Brasil, oficialmente, o ano de 1932 marcou o sufrágio feminino aprovado no código eleitoral.
O voto dos analfabetos
Em 1879, o ministro da Justiça, Lafayette Rodrigues Pereira, argumentaria que “a ignorância, porque se generaliza, adquire o direito de governar? Se há no Império oito décimos de analfabetos, direi que eles devem ser governados pelos dois décimos que sabem ler e escrever”.
O projeto que deu origem à Lei Saraiva, em 1881, foi redigido pelo jovem advogado e deputado geral Ruy Barbosa (BA). Ele acreditava que escravizados, mendigos e analfabetos não deveriam votar porque careciam de ilustração e patriotismo e não sabiam identificar o bem comum.
Por mais de 100 anos, todas as lutas pelo direito de voto ao analfabeto caíram por terra, até que, em maio de 1985, com as mobilizações pela redemocratização do país pós-ditadura, uma emenda à Constituição foi aprovada por deputados e senadores.
A Constituição de 1988 manteria os termos da decisão de 1985, e este direito permanece até hoje.
O direito de ter direito (ou “voto não é esmola!”)
Todo esse caminho de luta daria uma série com 10 temporadas. Contudo, parte da opinião pública parece ignorar esse legado.
Ato em Brasília pede intervenção militar (Foto: AP Photo / Andre Borges)
O contexto social que emergiu após a década de 2010 tem uma importância fundamental para que possamos compreender o presente momento. O acirramento dos protestos de rua pode ser apontado como um dos motivos, muito embora também possamos identificar a apropriação indébita de grupos oriundos das classes médias e altas, que aproveitaram o ensejo para pôr em prática sua tática de dominação e golpe em 2016.
Isso merece um texto próprio, tamanha a profundidade do debate. Por hora, podemos dizer que tal processo deu origem a uma narrativa anti direitos fundamentais, chamados indiscriminadamente de “direitos humanos” usados para “defender bandido”. Educação, saúde e o próprio voto entraram nesse balaio.
Pergunto-me: a quem interessa incutir uma narrativa tão subserviente e desmobilizada na cabeça do brasileiro médio? Será que político é tudo igual, ou igual mesmo é a reprodução desse discurso de achar que nada muda?
Voto não é esmola! Lembre disso antes de apertar o botão verde da urna.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.