Welfare State de R$ 41 bi deve empurrar debacle para 2023
O Senado aprovou quase por unanimidade a proposta de emenda constitucional que permite gastar estimados R$ 41 bilhões em transferência de renda. Ainda não passou na Câmara dos Deputados no momento em que escrevo este artigo, todavia posso dar de barato que a proposta será aprovada com a mesma facilidade. Não só eu, mas todo o país.
Na prática a PEC implode o teto de gastos previstos na Lei de Diretrizes Orçamentárias para este ano. E o teto de gastos era um déficit de R$ 170 bilhões. Para tentar evitar formalmente a pedalada fiscal, o texto aprovado no Senado justifica um estado de emergência decorrente da elevação dos preços do mercado de petróleo (leia-se guerra da Ucrânia) e os impactos sociais decorrentes e ainda desconsidera tais despesas do déficit orçamentário já previsto.
É uma licença para gastar à vontade. Os efeitos previstos é o aumento do Auxílio Brasil em 50%, passando a ser R$ 600 e com despesa total de até R$ 26 bilhões. O Vale Gás será acrescido com mais 50% do preço médio do GLP calculado pela Agência Nacional de Petróleo. O gasto total estimado com o VG ultrapassa R$ 1 bi. Os caminhoneiros receberão R$ 1 mil/mês, totalizando mais R$ 5,4 bi em gastos públicos e mais R$ 2 bi irão para os motoristas de táxi.
União, Estados, DF e município receberão um aporte de R$ R$ 2,5 bi para subsidiar as isenções no transporte público para idosos. Outros R$ 3,5 bi irão para Estados e DF para cobrir créditos de ICMS na produção de etanol e o Programa Alimenta Brasil receberá R$ 500 mi para combater a insegurança alimentar, ou seja, a fome.
E é isso. Deveremos viver em um mundo civilizado até 31 de dezembro e, depois, cenário de terra arrasada. Ou não. Basta encaminhar nosso texto constitucional para Kiev e Moscou esclarecendo que demos prazo para o fim da guerra. Afinal, o aumento de preços do petróleo e das commodities não pode passar do ano novo. Duvido que outros R$ 40 bi vão brotar do orçamento federal.
Zelensky e Putin certamente vão se impressionar com o apelido da proposta: PEC Kamikaze. O ministro Paulo Guedes referiu-se aos legendários pilotos suicidas japoneses que aterrorizaram a frota americana no pacífico para resumir o pacote de medidas. Enquanto os parlamentares dizem ver o benefício financeiro temporário para 20 milhões de famílias, Guedes enxerga a bomba fiscal.
Ambos estão certos do próprio ponto de vista. O benefício acontece, mas a que preço?
Recessão on-delay
O efeito de R$ 41 bi na economia é o equivalente a uma transfusão de sangue em um paciente na UTI. Não dá para ele sair dançando, mas pode respirar melhor. Os resultados do PIB em 2022, ou melhor dizendo “pibinho”, afastaram tecnicamente o risco de recessão, pois são necessários dois trimestres de resultados negativos.
O Santander já havia divulgado sua projeção para o PIB deste ano (1,2%) no início de junho, mas alertava para o risco de recessão em 2023. Creio que o pacotaço de bondades estabilize temporariamente o cenário por aqui, embora exista o risco real de recessão global turbinado pela guerra da Ucrânia. Zelensky já disse que a guerra precisa acabar antes do inverno europeu no fim do ano. Que bom que nossa Constituição vai no mesmo sentido! É uma notícia e tanto para o mundo.
Há analistas céticos a respeito da relativa estabilidade a ser proporcionada pelo pacote de medidas. Entendem que investidores devem rever aplicações no setor produtivo e a inflação e os juros devem continuar altos. Isso está ocorrendo mesmo antes mesmo da injeção dos recursos previstos. Estão chovendo no molhado. Os R$ 200 a mais que as famílias vulneráveis receberão não devem pressionar em demasia o consumo a ponto de forçar os preços para cima por excesso de demanda.
Os combustíveis devem deixar de pressionar o IPCA durante algum tempo. Os juros deixam títulos públicos e privados mais interessantes e seguros para os investidores. Não há perspectiva de crescimento negativo nos próximos trimestres.
Já o risco de recessão mundial é concreto. E isso pode afetar as exportações brasileiras, que representam quase 20% do PIB, ainda neste ano. É isso e não o pacotão fiscal o risco mais iminente. O provável é que nos próximos meses tenhamos crescimento baixo sustentável. Os juros e a inflação devem continuar sua queda de braço. Tudo deve mudar pouco até o fim do ano.
Repetindo: o problema maior é no ano que vem, que está logo ali, menos de seis meses. Com governo e famílias sem dinheiro e empresas sem recursos ou com pouca disposição para investir, podemos passar por um longo período com a economia respirando por aparelhos e piora acentuada nos indicadores sociais.
Quando as empresas relutam em investir e o consumo está travado por alta de preços e juros, é importante ter ao menos um ator econômico com caixa. O Welfare State, ou Estado de Bem-estar, funciona com base na intervenção governamental e assistencialismo, conforme preconiza o economista John Maynard Keynes. É importante em cenários recessivos, quando a recuperação do mercado se mostra incerta e há piora progressiva nos indicadores sociais.
A intervenção estatal na economia no nível keynesiano deve ser limitada no tempo, sob pena de comprometer o equilíbrio fiscal do Estado indefinidamente. O desequilíbrio fiscal é um fator de instabilidade com consequências amplas na economia. O Estado perde capacidade de garantir a estabilidade econômica, prejudicando o mercado.
Não há mal em lançar medidas keynesianas desde que:
1) Sejam temporárias e;
2) O Estado disponha de recursos.
A PEC 01/2022 informa expressamente sua data de validade: 31 de dezembro de 2022. Está satisfeita a primeira condição. O problema é a segunda. O planejamento orçamentário da União previa um déficit de R$ 170 bilhões. Então a proposta é um salvo conduto para gastar bem mais sem fontes de financiamento seguras.
Efeito Eleitoral
É óbvio que o pacotaço foi viabilizado visando às próximas eleições. Não é de agora que os programas de transferência de renda vêm sendo usados com objetivos políticos. O Bolsa Família atingiu seu apogeu em 2014, ano de eleição presidencial, atendendo 14 milhões de famílias e totalizando uma despesa de R$ 41,1 bilhões corrigidos pelo IPCA, de acordo com matéria divulgada pelo site Poder 360 em 2021. Coincidentemente, um valor bem semelhante ao da PEC.
Os valores de 2014 levaram o então deputado Jarbas Vasconcelos a definir o Bolsa Família como “o maior programa oficial de compra de votos do mundo”. Agora senador, votou a favor da PEC. A separar as duas situações, apenas oito anos e o formato. É a prova que o mundo dá voltas e a política gira ainda mais rápido.
Não sou contra os programas de transferência de renda. O neoconstitucionalismo preconiza que os valores fundamentais, entre eles a dignidade da pessoa humana, não podem ser mera declaração de intenções. Desde a criação do SUS no final da década de 80, o Brasil assiste a uma ampliação de sua rede de proteção social. Se não chega a solucionar os problemas, é evidente que ameniza.
Como é evidente que hoje o Estado não dispõe dos recursos para fazer frente às despesas previstas na proposta. Tudo isso prenuncia um ano difícil a partir de 1º de janeiro, ou antes dependendo da conjuntura.
Apesar de não existir ainda o Bolsa ou Auxílio Esperança, desejo muito estar errado. Se estiver certo, sobreviveremos. Como sobreviveremos ainda não sei.
Alguém sabe?
Este artigo foi escrito por Renato Assef e publicado originalmente em Prensa.li.