Why Women Kill e a vilanização da não monogamia
Se no ano passado alguém me dissesse que Why Women Kill não é uma série impecável eu certamente riria bastante.
Quando eu terminei de assistir a Why Women Kill pela primeira vez, me tornei um desses fãs mais apaixonados que só sabem dizer “Meu deus, como essa série é perfeita!”
Só que eu assisti à 2ª temporada da série — e, inclusive, também estou na fase de achar perfeita — e percebi que foi extremamente superior à primeira, o que me levou a pensar...
Por que a 1ª temporada de Why Women Kill não é perfeita?
Mas antes, precisamos entender melhor sobre o que estamos falando.
Contextualizando...
Para começar a falar de Why Women Kill, antes precisamos de um breve momento de contextualização: estamos falando de uma série de Marc Cherry.
Para quem não liga o nome à pessoa, Marc Cherry é o criador de Desperate Housewives, aquela série de 2004 sobre donas de casa... desesperadas.
A série foi um sucesso e durou até 2012. Mas, apesar de ser cativante e extremamente eficiente na função de entreter, Desperate Housewives ainda é um produto de seu tempo, majoritariamente focada no estereótipo da histeria feminina e no descontrole emocional das personagens.
É compreensível, afinal morar em Wisteria Lane não era uma tarefa muito fácil, com assassinatos, furacões e acidentes aéreos acontecendo o tempo todo...
Acontece que, se Desperate Housewives estreasse agora, talvez a recepção do público não seria a mesma. Mas na época deu muito certo — e dá até hoje, por causa do apego emocional dos fãs mais antigos e também porque o público mais recente da série entende que se trata de um humor de época.
Então chegamos a Why Women Kill
Sete anos depois do fim de Desperate Housewives, em 2019, Marc Cherry lança uma espécie de prima chamada Why Women Kill — uma dramédia antológica que a cada temporada nos apresenta uma ou mais histórias que vão se desenvolver em torno da pergunta do título:
“Por que as mulheres matam?”
A série segue o mesmo formato histérico de Desperate Housewives, com o mesmo tom que mescla comédia e mistério em situações algumas vezes copiadas praticamente por inteiro da série anterior.
Mas tudo bem, porque Why Women Kill é engraçada. Marc Cherry merece esse crédito.
Na 1ª temporada nós somos apresentados a três núcleos de diferentes épocas:
1963, protagonizado por Beth Ann (Ginnifer Goodwin)
1984, protagonizado por Simone (Lucy Liu)
2019, protagonizado por Taylor (Kirby Howell-Baptiste)
Situados na mesma casa, cada núcleo tem sua própria trama digna de novela das nove (não é à toa que a série está disponível no Globoplay), e cada uma vai levar a uma tragédia.
Os dois núcleos que retratam o passado foram muito bem recebidos, entretanto, a resposta do público à trama de 2019 não foi a mesma.
Encabeçada pela personagem da Taylor, é considerada a mais fraca pela opinião dos fãs, e infelizmente eu tenho que concordar.
Isso se dá por um motivo: a história de Taylor é bem injusta — por culpa dos roteiristas.
Falta alguma coisa no núcleo de Taylor
Para o núcleo de 2019, Why Women Kill apresenta uma mulher completamente oposta às outras duas protagonistas.
Taylor é a representação da mulher feminista: uma advogada bem-sucedida, muito segura de si, da sua sexualidade e do seu casamento aberto.
É claro, ela também vai chegando à beira de um colapso conforme a série avança (afinal, Why Women Kill ainda é uma série do Marc Cherry). O problema é que no caso de Taylor a história é diferente.
Ao contrário das outras duas, seu processo não é cômico. Na verdade, chega a ser angustiante em alguns momentos.
Marc Cherry é excelente escrevendo personagens caricatas, por isso mesmo as histórias de maior sucesso são as que se passam nos anos 1960 e 1980 — décadas presentes no imaginário do público em sua forma mais gritante e estereotipada.
O humor que torna certos tópicos aceitáveis dentro desse conceito se encontra em elementos estéticos que nos lembram a todo momento de que estamos no passado e, de alguma forma, podemos nos distanciar dele.
Em 1963, esse tom cômico está presente no ritmo da fala e no tom de voz de Beth Ann, característicos no imaginário camp da década de 60. Já em 1984, o tom cômico está nas mangas bufantes e no cabelo cheio de Simone, representando a extravagância icônica dos anos 80.
Mas isso não acontece no núcleo de Taylor porque 2019 foi logo ali.
Espera aí...
Eu sei o que você está pensando.
Mas e em Desperate Housewives?
Sim, Desperate Housewives também não tinha o recurso de emular o passado para que Marc Cherry conseguisse se safar com suas narrativas absurdas e mesmo assim ele conseguia.
Você tem toda razão.
Mas não podemos esquecer que Desperate Housewives é uma série de 2004, 17 anos atrás.
Bom, felizmente, o que eu posso dizer é que o mundo muda, e a sociedade também.
Desperate Housewives é um produto de seu tempo. Assistir a essa série hoje em dia tem um efeito parecido com o de assistir aos outros núcleos de Why Women Kill.
Não é à toa que a história de Simone tem um ponto igual à de Gabrielle (Eva Longoria), em Desperate Housewives.
Ver as coisas que acontecem com Taylor nos dias atuais não tem o mesmo efeito, principalmente porque estamos numa época em que discussões sobre manipulação emocional e abusos psicológicos estão em alta.
Convenhamos, é difícil deixar passar certas coisas em 2019.
A verdadeira vilã (ou quem eles querem que você pense)
Já que o teor cômico do núcleo dos dias atuais em Why Women Kill não se estende à estética, ele fica restrito a outro ponto.
A estrutura subversiva do casamento de Taylor e Eli (Reid Scott) faz contraste com o casamento tradicional de Beth Ann e Rob (Sam Jaeger). Mas, enquanto Beth Ann decide matar seu marido para se vingar de coisas ruins que ele fez, Taylor precisa lidar com o monstro que ela mesma criou.
E aqui começa o maior problema desse núcleo: a culpabilização de Taylor por escolher ter um relacionamento aberto.
Só para não esquecer: Taylor e Eli são um casal completamente moderninho. Eli é o sustentado da relação, enquanto a esposa é a provedora. É ela quem banca a reforma da casa nova e também é ela quem sugere abrir o casamento.
A princípio, o relacionamento parece dar bem certo, o problema é que Taylor constantemente burla as regras desse acordo que ela mesma sugeriu. De cara ela ignora duas das regras mais importantes: não se envolver emocionalmente com as outras pessoas e não trazer outras pessoas para dentro de casa.
Logo no início é informado que Taylor e Jade (Alexandra Daddario) estão juntas há seis meses — e Jade está traindo o namorado com Taylor. Como se não bastasse, o namorado dela descobre a verdade, e por isso Taylor a convida para passar a noite com eles.
O problema nesse ponto é justamente a junção de não monogamia ao conceito de traição como se fossem ideias análogas ao mesmo tempo que não há nenhum momento, por menor que seja, dedicado a mostrar a existência de uma relação não mono saudável.
A partir daí, Taylor percebe que foi vítima do próprio veneno, porque Jade se revela uma mercenária que faz de tudo para não voltar à vida de antes, e isso inclui influenciar uma recaída no vício de Eli em cocaína e separar o casal.
O desenvolvimento de Taylor se torna uma jornada inteira pautada pelo arrependimento de ter feito isso. As coisas pioram mais ainda quando surgem cenas de suas irmãs a julgando por ter escolhido viver um casamento que foge da norma, porque nesse momento fica bem claro que a série coloca a não monogamia como o pior dos males.
Afinal, se Taylor não levasse essa vida, não estaria passando por isso.
Por fim, Jade se torna a morta da vez, subvertendo novamente as estruturas apresentadas antes, já que Taylor é a única que não mata o marido.
Assim, fica implícito que a maior vilã desse núcleo era a própria não monogamia, representada por Jade.
Também força a narrativa de que Taylor é a culpada por sugerir a abertura do casamento desde o princípio, já que o final feliz desse núcleo se dá quando ela decide fechar o relacionamento de vez para ser um casal feliz de verdade com Eli.
Não vou dizer que isso tira a graça da série completamente, porque não é verdade. Mas, depois de dar mais atenção a esse aspecto da narrativa de Marc Cherry, se torna incômodo acompanhar o desenrolar da terceira trama.
Talvez seja por isso que a 2ª temporada de Why Women Kill me deixa mais interessado: Marc Cherry pareceu ter aprendido com o erro desta e acertou em cheio ao criar uma história completamente situada no passado, sem nenhuma ligação com o presente.
Dessa forma, a caracterização propositalmente caricata dos personagens garante ao seu criador liberdade total para inventar as situações mais absurdas que a linguagem da série permite sem que entre em questões mais cabeludas da sociedade atual e sem que haja mais injustiças como a que aconteceu com Taylor.
Imagem de capa - Kirby Howell-Baptiste como Taylor. (Reprodução - Globoplay)
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Este artigo foi escrito por Victor Neves e publicado originalmente em Prensa.li.