Zé Neto, Anitta e o Efeito Tororó
E não é que uma simples tatuagem, feita há meses naquele lugar onde o sol não bate, acabou desencadeando uma investigação e colocando nos holofotes (sacaram o paradoxo?) uma das maiores farras com dinheiro público da história recente do país?
Tudo começou quando o sertanejo Zé Neto (que foi personagem de destaque numa matéria sobre os malefícios do cigarro eletrônico nesta mesma Prensa), resolveu fazer um comentário inconveniente sobre uma tatuagem que a cantora Anitta fizera, digamos, numa parte muito íntima de seu corpo. Ok, o problema era dela, exclusivamente dela.
Muito bem, mas Zé Neto achou que não. Num show ao lado do companheiro Cristiano, na bela cidade de Sorriso, em Mato Grosso, disse:
"Nós somos artistas que não dependemos de Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no "toba" pra mostrar se a gente tá bem ou mal".
Anitta, mesmo não gostando do pitaco, ficou quieta. O mesmo não se pode dizer de uma raivosa turba de fãs, além de boa parte da classe artística, que saiu em sua defesa.
Picuinhas recorrentes
O pai de Anitta, Mauro Machado, foi um dos primeiros a retrucar, dizendo que não é de hoje que o sertanejo tem problemas com Anitta. Ao site Splash, do UOL, Mauro declarou que certa vez Zé Neto deu ataque porque a cantora havia feito a abertura de um show sertanejo. Ok, entendemos que o estilo de Anitta não tem nada a ver com o ambiente, mas não é para tanto.
Mauro continuou, relatando que como represália, a dupla colocou seu ônibus barrando a saída da produção de Anitta em um evento numa cidade interiorana. Ora, já diria o Senhor Madruga, "a vingança nunca é plena, mata a alma e envenena".
Picuinhas à parte, o que importa aqui é como funciona a Lei Rouanet citada por Zé Neto, valendo para eventos culturais que envolvem desde shows musicais até filmes de longa-metragem.
Burocrático e cuidadoso
Primeiro, uma proposta é apresentada à Secretaria de Cultura; em seguida, é analisado por pareceristas especializados, e analisada pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura. Se tudo estiver em ordem, é homologado pelo Ministério da Cidadania. No próximo passo, a produção corre (por conta e risco) atrás de um patrocinador, que poderá deduzir o valor investido na obra cultural, parcial ou totalmente, em sua próxima declaração ao Imposto de Renda.
Perceba que não há nenhuma verba pública neste processo. São impostos devidos por uma empresa (que pode até ser uma estatal, como a Petrobras), revertidos para investimento na obra. Acompanhou até aqui?
O problema é que a frase de Zé Neto, nosso cachê quem paga é o povo, apesar de semanticamente correta, traz um problemão à tiracolo: o povo, no caso, são as prefeituras, que contratam os espetáculos sem licitação, por valores bastante variáveis, via de regra usando verbas que não eram destinadas para este fim. E é aí que o bicho pegou.
Do povo, para o povo?
O show em Sorriso custou aos cofres municipais aproximadamente R$ 400 mil. A dupla faz rotineiramente estes eventos, com contratação direta pelas prefeituras. Existe uma certa regulamentação para coibir abusos, previsto pelo parágrafo primeiro do Artigo 25 da Lei de Licitações. Ainda assim, precisa passar pela aprovação do Tribunal de Contas e pelo Ministério Público do município. Coisa que muito raramente acontece.
Geralmente, o valor não fica apenas no que os artistas cobram pelo show. Prefeituras normalmente arcam com custos de transporte, hospedagem, alimentação e outros mimos.
Gusttavo Lima: tche-tcherere-tche-tche sob investigação | Imagem: Metrópoles
Essa foi a ponta do iceberg. Poucos dias depois, luzes se acenderam na direção de outro sertanejo, bem mais conhecido: Gusttavo Lima. Tradicional usuário deste expediente, foi apontado pelo Ministério Público de Roraima devido a um show na cidade de São Luiz. Cachê pago: R$ 800 mil.
O agravante: São Luiz uma cidade muito pequena. Com oito mil habitantes, 32% deles em condições de extrema pobreza. Matematicamente, cada morador acabou pagando R$ 100 para que Gusttavo Lima se apresentasse. Inclusive aqueles que não têm o que comer.
Mato sem cachorro
Assim que a história de São Luiz veio à tona, surgiu uma denúncia envolvendo o mesmo artista, contratado para um show em Conceição do Mato Dentro, cidade mineira com 17 mil habitantes. Em 27 de maio, foi revelado que o povo desembolsaria a bagatela de R$ 1,2 milhão.
E claro, para ter direito a ouvir a maviosa voz do cantor do tche-tcherere-tche-tche, o cidadão conceicionense cederia verbas originalmente destinadas à Educação, Saúde e Infraestrutura. Afinal, seria um showzaço, dentro das comemorações da Cavalgada do Jubileu do Senhor Bom Jesus do Matozinhos!
Um tanto constrangido por ser pego de calça curta, o prefeito de Conceição do Mato Dentro, José Fernando Aparecido de Oliveira (MDB) cancelou a contratação de Gusttavo Lima, e de quebra a de Bruno e Marrone. Outros shows, com valores mais em conta, continuam mantidos, caso de Simone e Simaria, Padre Alessandro Campos, e outros de menor repercussão.
A sopa não chegou a esfriar: no dia 28, Anitta (esqueceram dela?), postou um comentário na rede social Twitter que certamente estará nas retrospectivas de 2022:
"E eu achando que tava só fazendo uma tatuagem no tororó"
Anitta: fazendo política | Reprodução: Twitter
Segundo o Dicio, Dicionário Online de Português, Tororó pode ser um adjetivo, significando baixo, grosso ou muito aparado; como substantivo masculino, sobretudo na região do Rio de Janeiro, pode ser usado como conversa fiada, ou lero-lero. Nenhum desses significados, no entanto, dizem respeito ao que Anitta se referiu, com maestria.
Parodiando a música folclórica, vamos dizer que enquanto Zé Neto foi ao tororó, acabaram achando bem mais do que água.
Dia seguinte, foi ventilado que a quebra unilateral de contrato obrigaria a Prefeitura de Conceição do Mato Dentro a pagar pelo menos 50% do valor anteriormente combinado. O prefeito foi à Imprensa negar, veementemente.
No dia 30, a bola voltou a quicar para o lado de Gusttavo Lima: o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro informou que investiga a contratação de seu show pelo município de Magé. Valor contratado: R$ 1 milhão. Acusação: "violação aos princípios da administração pública".
Pesa aqui o fato do valor ser aproximadamente nove vezes superior a toda a verba destinada para iniciativas culturais no município para todo 2022, exatos R$ 104.485, 50. Fica ainda melhor se confrontar com a verba destinada (também para todo o período) para a reforma, construção e ampliação de creches na cidade: R$ 72 mil, segundo revelado pelo jornal Estado de Minas.
Se arrependimento matasse...
No mesmo dia, o artista postou em suas redes sociais que não estava mais aguentando a pressão e estava a ponto de "jogar a toalha". E reclamou:
"Eu venho levando tanta pancada, gente, mas tanta pancada, e venho aguentando calado tudo isso. Eu não sei o motivo de tanto ódio, o motivo de tanta perseguição".
Mesmo com o desabafo, Gusttavo sequer teve tempo de respirar: horas depois, chegou a informação que o deputado federal André Janones (Avante) havia destinado quase dois milhões para contratá-lo, através de recursos de uma emenda parlamentar. Seria um grande show, dentro da Feira Agropecuária de Ituiutaba, MG, cidade natal do político.
O que poderia soar como uma demonstração de amor de Janones à sua terra, logo ficou evidente: o espetáculo ocorreria uma semana antes das eleições majoritárias de outubro. E veja só, por coincidência André Janones é pré-candidato à Presidência da República, pelo Avante. Que coisa, não?
Gusttavo Lima certamente gostaria de ser esquecido, o problema é que quanto mais se mexia no vespeiro, mais coisas apareciam. Foi revelado que sua empresa, a Balada Eventos, responsável pela negociação de seus shows, tem o capital social de R$ 100 mil, o que não é nada suspeito.
Suspeito é que ele costuma se deslocar por aí à bordo de um jatinho. E não é qualquer jatinho, mas um espetacular Bombardier Global Express, avaliado em singelos R$ 50 milhões.
Olha o aviãozinho: orçamentos nos céus | Imagem: Peter Bakema
Seu brinquedinho tem comissária de bordo, cozinha, dois banheiros, duas camas e poltronas de primeira classe para dezesseis passageiros. Muito condizente com o capital social declarado da empresa, conforme avaliado pelo informativo Diário do Centro do Mundo.
A perseguição de artistas sertanejos a quem se beneficia da Lei Rouanet não vem de graça. É sabido que é o setor da classe artística mais afinado com o atual governo federal. O presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores já declararam mais de uma vez que a lei beneficiaria artistas "de esquerda". E tudo, como já é de costume, descambou para o fla-flu político.
O cantor e compositor Sérgio Reis, apoiador de primeira hora do presidente, que entre outras coisas encampou uma bisonha campanha contra a TV Globo, é um que saiu em defesa de Gusttavo Lima. Explicando o inexplicável sobre o uso indevido das verbas públicas na contratação de shows sem licitação, conforme declarou à Folha de São Paulo:
"É dinheiro para o público, não é dinheiro público. O prefeito tem que levar alegria para o público. O que é que há? O prefeito ajuda o comércio local. Uma festa gira dinheiro para o pipoqueiro, o pobre que vende algodão doce, a dona de casa que faz doce e vende na banquinha na festa".
Sérgio Reis: tocando o berrante para o dinheiro público | Imagem: Folha de São Paulo
As coisas não pararam por aí. Um movimento iniciado nas redes sociais, logo encampado por partidos de oposição, pede a instalação de uma CPI do Sertanejo. No entanto, fontes ouvidas pela reportagem do site O Antagonista revelam que a probabilidade disso vir a acontecer, sobretudo num ano de eleição, é mínima. Um dos líderes partidários consultados foi taxativo, dizendo que “apenas um escândalo de proporções bíblicas mobilizaria Câmara e Senado neste momento”.
Redes sociais: apoio à investigação | Reprodução: Twitter
Além disso, a criação de uma CPI nestes moldes esbarra em um detalhe de caráter jurídico: os contratos são celebrados entre os cantores e as prefeituras, ficando legalmente fora do raio de ação de deputados e senadores. A ação acaba ficando restrita aos ministérios públicos municipais, ou no máximo estaduais.
Dindim por dindim
Mas o inferno de Gusttavo Lima ainda não estava completo. Foi revelado que sua empresa, a Balada Eventos, responsável pelo gerenciamento de sua carreira e de outros artistas, recebeu um aporte financeiro do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), de R$ 1,3 milhão, para a “compra de máquinas e equipamentos industriais”, com condições de juros facilitadas.
Porém, ele não é o único agraciado com as benesses governamentais: tornou-se público que a dupla Henrique e Juliano recebeu R$ 752 mil, em 2012; Daniela Mercury, R$ 300 mil, e a banda Tchê Garotos, R$ 470 mil, ambos em 2013. Ou seja, a farra com dinheiro público, de várias vertentes, não é novidade.
De qualquer modo, a Lei Rouanet, respeitadas suas características, é a instituição mais confiável de promoção de obras artísticas e culturais em território nacional. Entretanto, independente de posições políticas, há a crítica, muitas vezes pertinente, que é muito mais fácil obter-se o benefício da lei quando já se é um artista consagrado.
Há artistas independentes batalhando há tempos seu lugar ao sol, tentando o incentivo vindo da lei, cujos projetos são recusados ou emperrados. Ao passo que artistas do mainstream, como Ivete Sangalo, Cláudia Leitte, Luan Santana, Maria Bethânia e Mc Guimê, que não teriam necessidade similar, foram contemplados.
Num resumo bem básico, a Lei Rouanet tem o costume de privilegiar quem já tem privilégios, ou seja, quem já tem retorno mais que certo. Não deixa de ser um certo desvio de função. Bom para as empresas que deduzem seus impostos, mas acaba sendo injusta com a finalidade cultural.
Sonho meu
Protesto em Teolândia: o verdadeiro valor da amizade | Reprodução: Twitter
Veja porém, como são as coisas: em 3 de junho, moradores de Teolândia (BA), cuja prefeita Maria Baitinga de Santana cancelara o show contratado de Gusttavo Lima para a Festa da Banana, atearam fogo em pneus e bloquearam a BR-101, em protesto. Dias atrás, a prefeita havia dito que contratar o show do cantor, por mais de R$ 700 mil, era a "realização de um sonho".
Percebe-se que a população é formada por sonhadores, ou a prefeita tem muitos amigos. No dia seguinte, sábado, a justiça liberou a realização do show, para felicidade da chefe do executivo. Mesmo com Gusttavo Lima embolsando cerca de 4,61% do PIB anual da cidade, segundo o IBGE.
Em seu Instagram pessoal, a prefeita comemorou:
"Ninguém consegue derrotar aquele que Deus escolheu para vencer. Deus é justo! Deus sonda e conhece o meu coração".
Até que em pleno domingo, 5 de junho, a justiça voltou atrás e proibiu, novamente, o evento. A região inteira está sob uma tragédia devido às chuvas, e o MP da Bahia achou absurdo gastar uma fortuna com Gusttavo Lima. Enfim, quando você ler este artigo, pode ser que o show aconteça, ou tenha acontecido. Ou não, como diria Gilberto Gil.
Mas é de conhecimento popular que a vida tem suas ironias, o tempo todo. Às vezes, muito certeiras. Nesse caso, não é diferente: em 2017, os agora desafetos Anitta e a dupla Zé Neto e Cristiano não trocavam farpas. Pelo contrário, gravaram uma música em colaboração, que se tornou sucesso. O título: Seu Polícia. E pensar que essa confusão toda mais um pouquinho iria parar na delegacia.
Para fechar, vamos ficar com a última parte daquela música folclórica "Fui no Tororó". Prestem atenção no quanto essa parte é significativa:
"Eu passei por uma casa / Um cachorro me mordeu / Não foi nada, não foi nada / Quem sentiu a dor fui eu".
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.