From zero to hero - ou como a industria de Design pode afetar sua confiança profissional
Como já dito por aqui numa outra oportunidade, entrei pro mundo do Design pela parte visual da indústria, há uns 15 anos atrás. Na época, meus critérios para a decisão não foram dos melhores. Tudo que eu buscava era uma carreira onde piercings, tatuagens e penteados fora do convencional não fossem uma barreira.
Preciso admitir que ao menos isso saiu exatamente como o planejado.
Eu comecei sendo o cara estranho que chegava de skate e camiseta regata na turma de análise de sistemas.
Pulei pras aulas de Design Digital e me empreguei na área, sempre usando as mesmas regatas.
Uma afronta para muitas pessoas de visão tradicional sobre ambiente de trabalho, dress code e outros conservadorismos afins.
A contrapartida dessa pequena conquista demorou muito para ser percebida. Muito mesmo. A epifania libertadora me visitou não faz muito tempo.
Explico.
Quando se trabalha com Design fora da área de tecnologia no Brasil, o grosso das vagas que encontramos é esse: gente sem a mínima ideia sobre o assunto.
Cegos sobre sua importância e valor para uma empresa, produto ou serviço e que acha que tudo se resume a empurrar pixels de um lado para o outro.
Recrutadores que misturam os papéis de Diretor de Arte com Designer Visual baseados em algumas partes dos conhecimentos destes que sim, são relacionados.
Mas diz aí, ninguém liga para o Lava-rápido pedindo socorro quando tem um incêndio só porque eles trabalham com água e mangueira como os bombeiros, não é?
Posso estar enviesado por ser da área, mas queria muito um dia descobrir a razão dessa falta de conhecimento na hora de contratar profissionais. Não seria esse o dever mínimo de um recrutador, líder ou gestor? Como sempre quando eu escrevo por aqui, talvez esse seja um papo para outra hora.
O problema a que precisamos nos atentar é o ambiente e a qualidade do trabalho que podem ser desenvolvidos a partir dessa situação.
Talvez eu seja muito idealista, mas sempre esperei ser contratado para produzir com excelência e qualidade, usando tudo que aprendi durante os anos de estudo. O mito de viver o glamour por ser a grande mente por trás de ideias criativas.
Porém, no dia-a-dia o que vi foram pedidos e mais pedidos se acumulando de velhos e novos clientes. Preocupados sempre só com o resultado final, nao a qualidade. Minhas peças. Meus conteúdos. Minhas vendas.
A constância era zero. Previsibilidade idem. Stress? Lá no alto. Sempre.
Porque afinal, não importa quanto tempo você tenha se empenhado para terminar as milhões de peças gráficas que compõem uma campanha de marketing ou de lançamento.
Não importa o seu esforço para criar um conceito que fizesse sentido com a marca e a ideia do cliente para o produto ou serviço.
Quando o cliente não gosta do vermelho que você usou porque não casa com o Feng Shui da empresa dele, é não e ponto. E quem passa noites acordado pra terminar tudo a tempo é você, que não sabe nada de Feng Shui, mas tudo de composição, tipografia, Gestalt, entre outros.
Pois bem, foi fugindo desse cenário que comecei a mirar nos cargos que adicionavam duas letrinhas antes do solitário "design". UX. User Experience. Experiência do usuário para a maioria.
Uma janela, ou até porta da esperança, que se abriu e me levou para outros lugares, hoje distantes o bastante do debate sobre colocar ou não um pingo no i com forma de rostinho.
Mas nem tudo estava resolvido.
O sonho realizado da mugshot pra firma. Com piercings, tattoos e claro, regata. - Foto do meu arquivo pessoal
Com minha formação, sempre me senti um pouco inseguro de me chamar UX designer. Sentia falta de me aprofundar nas técnicas e métodos de pesquisa de usuário, toda a forma estratégica de pensar que é inerente da visão desse profissional.
Com o tempo ficou claro que deveria ser DE TODO designer. Eu só não sabia ainda porque apenas o pessoal de UX tinha o privilégio de realmente trabalhar dessa forma.
Estudei muito por conta própria. Livros, workshops, artigos da comunidade brasileira, conversas com outros colegas, mas ainda assim eu me sentia inseguro. Ou ainda pior, confuso!
Confuso ao perceber que o que eu via na teoria não era geralmente aplicado na prática, mesmo nos lugares onde meu cargo passou a ser UX Designer.
Fases de refinamento do problema a ser resolvido que eram completamente ignoradas, etapas de pesquisa de descoberta e aprofundamento inexistentes, e projetos começando já com uma solução pronta, afinal, gestores e chefes em geral sempre sabem o que fazer, não é?
Seus robôs-funcionários só precisam executar o que lhes é ordenado. Ainda que a ordem venha da maneira mais sutil, te chamando de colaborador e dizendo que você é um recurso muito importante da empresa. A TÁ.
Minha perspectiva só mudou de verdade quando conheci uma pessoa completamente fora do comum. Minha eterna "chefa" Alexandra Lugli. Que sempre me forneceu coragem e confiança para fazer as coisas como eu acreditava que deviam ser feitas.
Sempre me deu autonomia e por consequência, um dos maiores aprendizados que tive na minha carreira. Confiança gera confiança.
E nada inspira mais confiança do que ser uma pessoa transparente. E assim foi minha relação com ela, a quem chamo de chefa não por conta do cargo ou da hierarquia, mas como uma forma carinhosa de admiração, porque "chefe é chefe, né pai?"
Foi ela uma das principais responsáveis por eu me sentir apto para me candidatar a uma vaga no exterior, que viria a mudar completamente minha vida novamente.
Dessa vez, deixando para trás as amarguras das empresas que usavam designers para pintar rodapé e trocar lâmpada queimada, afinal, estava imigrando para um país nordico.
Quem nunca ouviu falar nas maravilhas do Design Escandinavo? E logo um cenário de paz, harmonia, e trabalho marcado pela excelência se fez na minha mente cheia de expectativas.
E como vocês devem saber, ao menos eu espero, para toda boa expectativa sempre há uma decepção de igual ou maior tamanho.
E assim foi minha vida no país longínquo e frio por quase dois longos anos, com uma pitada de burnout e estresse nas alturas. Resultado de uma mistura de síndrome de vira-lata com a confusão de sempre das empresas sobre o valor do Design.
E então fui salvo por, vejam só, um banco. Uma das instituições menos prováveis de se encontrar criatividade e inovação, mas lá estava. Uma comunidade com mais de 50 designers de todos os cantos do mundo, com uma nova líder que possuía alguns aspectos muito semelhantes aos de minha saudosa chefa Ale (beijos Adele).
Salvo, temporariamente, ou você achou que essa seria uma história com final feliz?
Alexandra Lugli me consagrando como UX Knight. Melhor chefe, sim ou com certeza? E sim, estou usando uma regata por baixo da camisa na foto.
Porque convenhamos, estamos falando de um banco. E nesse caso, um com mais de 30.000 funcionários. Se você for da área de tecnologia eu sei que o temor da guerra entre departamentos é a primeira coisa que vem à cabeça. Proclamem-se elas ágeis ou não.
E é claro que um banco não seria exceção para esse cenário recheado dos mais belos exemplos para não seguir sobre como interagir com outras pessoas.
Burocracia, falta de claridade na comunicação, regras e mais regras de segurança que atrasam muitos processos. Mas vamos lá, vai? É um banco. Ao menos isso é compreensível.
E então, como um gole d'água naquele dia quente e seco, que salva e refresca ao mesmo tempo, recebi um convite para lecionar.
Eu! O cara que depois de décadas ainda se perguntava se sabia fazer as coisas direito!
A surpresa com o convite só não foi maior do que o esforço e o empenho na preparação dos materiais para o curso. Os primeiros passos no mundo do UX design. A audiência? Um seleto grupo de bacharéis e mestrandos de uma das melhores faculdades do país.
Acho que não dá pra se sentir mais honrado do que isso. Nem pra sentir mais frio na barriga do que eu senti. Mas com a cara e a coragem, seguimos.
E o resultado até agora não poderia ser melhor.
Usando da transparência que aprendi com a vida e aperfeiçoei com a Ale, fui levando as aulas sendo franco e mantendo uma comunicação aberta e de duas vias com os alunos.
Cheguei a adaptar meu conteúdo de um dia pro outro, mesmo que tenha passado meses anteriormente planejando e criando tudo. Acho que isso é ser ágil de verdade.
No final, a resposta positiva da turma, vê-los realizando etapas importantes do trabalho de UX e os feedbacks agradecendo meu esforço valeram a pena demais.
O sentimento final não poderia ser outro. Eu consegui. Ensinei conceitos e técnicas complexas num espaço curtíssimo de tempo. E a mensagem foi entregue com sucesso.
Mas como dito, a comunicação foi de duas vias. A melhor parte foi o que EU aprendi. Meus alunos não fazem ideia, mas eles também me deram uma lição valiosíssima.
Eu finalmente me sinto bem por conta do meu trabalho. Eu finalmente percebi que, sim, eu sei do que estou falando e com bastante propriedade. Consegui conduzir 27 alunos de 0 a 100 no mundo do Design, a ponto de estarem desenvolvendo projetos reais enquanto o curso continua. E com os exemplos mais reais possíveis de como na prática a teoria é outra. Quao foda é isso?
Senti como se eu tivesse superpoderes. E agora, eu sou um super-herói quando estou trabalhando. O sentimento de vira-lata deu lugar ao mote "Sou o melhor no que faço, mas o que eu faço não é o melhor".
Um dos novos poderes foi a visão de raio-x. Agora, consigo ver através de tudo.
Consigo entender que ao aceitar um emprego onde eu tivesse certas liberdades respeitadas, aceitei também um modelo de trabalho onde eu era visto como uma peça descartável. Um apertador de botões. Não alguém capaz de resolver problemas complexos.
Afinal, quem nao consegue pintar uma tela em branco com algumas cores e "fazer um site bonito", nao é? É isso que designers fazem para uma parte gigante dos profissionais, recrutadores e lideres.
Essa é a realidade de boa parte do mercado de Design, anteriormente eu diria Brasileiro. Agora, arrisco dizer, fora do Brasil também?
Empresas limitando nossas capacidades de explorar, criar e trazer as melhores soluções. De sermos melhores. Por conta de sua postura e visão defasadas.
Ainda bem que sempre tive professores que me deram as ferramentas para encontrar o caminho correto e uma Ale que sempre me incentivou ao invés de me limitar.
No final meus alunos me ensinaram que ao acordarmos temos sempre uma pergunta para responder:
Quem você vai escolher ser hoje?
Alguém que limita ou que amplia o potencial daqueles ao seu redor? Aquele que suga ou fortalece quem anda ao seu lado?
Como dizem nos melhores lugares por onde já andei, ou "soma ou some".
Dedicado a meus eternos professores, Elwyn Correa, Tiago Sotero e Bruno Salomão.
Em especial, a memória de Fabio Palamedi, um dos grandes nomes de UX no Brasil que nos deixou em Junho desse ano. Responsavel junto com a Ale pela minha oportunidade de fazer parte da Pagar.me e por meu crecimento como profissional e pessoa. Mais uma vítima da COVID-19 e do caos que assola nossa terra.
Imagem de Capa: Trabalhar de regata, salas de descompressão, mesas de bilhar e afins. As maravilhas, ilusoes e armadilhas do mercado de design e da vida tranquila no escritório. - Imagem de Ave Calvar do Unsplash
Este artigo foi escrito por Flavio Lee Budoia e publicado originalmente em Prensa.li.