Educação Domiciliar: Estratégia ou Abandono?
O Artigo Primeiro da Lei 9.3.94 de 20/12/1996 conceitua que “educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Dos tópicos destacados, “vida familiar” é o primeiro a ser mencionado no rol de ambientes em que o processo formativo deve se desenvolver. Com base nisso, centenas de pais e tutores pretendem que a educação acadêmica básica seja responsabilidade exclusiva da família, isto é, querem eles próprios instruir seus filhos e tutelados.
A história da Educação no Brasil é rica em afirmações e situações sobre sempre haver profissional alheio à família para dirigir o processo de assimilação acadêmica de crianças e jovens. À família, cabe questões de educação social.
Contudo, acúmulo de problemas nas redes de Ensino das esferas de governo durante as últimas décadas tem levado pais e responsáveis a buscar alternativas, a maioria delas com contratação de professores particulares em matérias nas quais filhos e tutelados têm mais dificuldades.
Nos últimos anos, essa busca por alternativas chegou à polêmica estratégica do ensino domiciliar (ou doméstico). Trata-se de dispensa da assiduidade do aluno nas escolas públicas de Ensino Básico Fundamental até os 17 anos de idade.
A questão é controversa e implica em série de demandas não totalmente assimilada pelas partes que a discutem, especialmente os pais, incluindo o rol jurídico. Dizem juristas e educadores que a Constituição é clara quanto à obrigatoriedade de pais e responsáveis de conduzir filhos/tutelados à Rede de Ensino.
Caso tal não ocorra, aqueles podem ser indiciados por crime de abandono acadêmico ou intelectual.
Conceito de ED
Compreende-se ensino domiciliar como aquele oferecido às crianças diretamente por alguém da família - ou conhecido muito próximo a elas – nos primeiros anos de aprendizado. Na prática, é o contrário do ensino institucional privado ou público ou ainda cooperativado.
Por implicação lógica, a criança ou jovem teria apoio de todos os membros da família, disponibilidade de tempo adaptada a necessidades familiares e direção adequada a suas tendências profissionais ou cognoscitivas.
Argumentos de Defensores e Opositores
Defensores da ideia apresentam dois argumentos que, dizem eles, são extremamente fortes no contexto atual da Educação Institucional: individualidade no aprendizado e alheamento a tantos problemas na área.
Para eles, o ED possibilita que a criança receba atenção individual do professor/instrutor. “É sabido que a carga de atividades dos professores das redes públicas e privadas está realmente estrangulada. A individualidade do aluno não é respeitada. Não exatamente por postura dos professores, mas por causa do sistema pedagógico em si”, lembra Larry Shyers ao analisar o Ensino americano e mundial, um dos mais ferrenhos defendentes do sistema domiciliar.
Além disso, situações de contato com drogas, violência, intolerância e outros problemas sociais teriam efeito minimizado com o ED. Ainda para simpáticos à ideia, é manifestação na contramão do pensamento de o caminho lógico do êxito profissional ser a escola tradicional. Asseguram que situações de Educação externas ao ambiente escolar – como o lar, a comunidade, a própria internet – seriam mais aceitáveis para a criança.
Já Lúcia Martins Peixoto, professora de Filosofia nas escolas estaduais Albino Fiore e Otto Weiszflog, em Caieiras/Grande S. Paulo, e formada nas Faculdades Integradas Claretianas, é reticente quanto aos procedimentos. “Penso que os espaços escolares, por mais deficientes que sejam - principalmente os públicos -, propiciam convivência mútua e fundamental para desenvolvimento de cidadania. É nas diversidades que se aprende a compartilhar espaços, respeitar o diferente, enfim, praticar moral e exercitar ética. Não me parece saudável limitar crianças e adolescentes ao espaço familiar”.
A publicitária Lu Sisti, também de Caieiras, ofereceu sua impressão materna sobre o tema: “Como mãe, o que posso dizer é ‘como privar uma criança, até sua adolescência, de convívio social’? E como seriam realizadas avaliações? Creio, pelo que criei meus filhos, que o Ensino tem de ser parceria entre pais, filhos e escola”.
Lu Sisti ainda vê o lado socializador da escola normal: “A criança precisa ter um convívio com outras crianças, precisa saber se defender, ter disciplina fora de casa, saber brigar por seus direitos, mesmo que sejam ínfimos”.
Ainda, considerou o tema de tal importância que envolveu a filha, pedagoga, e o filho, professor de história. Ambos comungam a ideia, condizente a sua: “Como não dizer que o convívio entre professores e alunos também não seja essencial? O convívio social é imprescindível para a criança, para a vida. Como a criança saberá compartilhar um brinquedo, um livro, contar histórias, brincar, jogar sem um colega?”.
E completa com experiência pessoal nessa área: “Meu neto [...] experimenta comidas diferentes com outros colegas, coisa que não faz em casa, só. Coisas mais simples não se tornariam atraentes: estudar em grupo, dividir, um completar a ideia do outro [...] Os pais podem até ensinar, mas como elas poderão sentir, estudar em conjunto?”.
Formada em matemática e pedagogia, pós-graduada em psicopedagogia, Edneia Daniel, São Paulo, também inicia exposição mencionando seus filhos: “Tenho dois filhos em idade escolar. A educação, de qualquer forma, deve vir de casa... tá... porém, o ensino/aprendizagem deve se dar em grupo, pois, em meu ponto de vista, a criança não teria maturidade para estudar sozinha; nem todos os familiares, condições de avaliar o grau de aprendizagem”.
Para o professor de geografia e história, Lourival dos Santos, do município de Inúbia Paulista (pouco menos de 600km de S. Paulo a caminho de Mato Grosso), há dúvidas quanto à fonte do aprendizado: “A menos que haja conhecimento dos transmissores de informação no ambiente em que os aprendizes estariam inseridos, a coisa tende a não funcionar. Se hoje, na Educação formal, não há altos índices de aproveitamento, imagine como seria a Educação Domiciliar sem pessoas capacitadas para auxiliar no aprendizado?”.
Filósofo e professor de sociologia, Rafael G. Silveira, de Caieiras, é inicialmente favorável por conta de autoconfiança em seus conhecimentos, mas considera a estratégia temerária em relação a um ponto particular: religião. Ateu, imagina que a situação abriria preceito para famílias religiosas ensinarem em casa e ignorarem a parte inconveniente da ciência que vai contra a Fé. Mas reconsidera: “Precisa ser vista com cuidado, essa possibilidade de estudar em casa. Nos países em que [o ED] é reconhecido, existe currículo básico e sistemas de Ensino à distância para auxiliar os pais. Acredito que seja alternativa boa para pais com formação acadêmica mais abrangente, mas arriscado do ponto de vista social”.
Silveira também vê com preocupação as questões sociais: ”Nas instituições, o aluno é confrontado com pensamentos diferentes, pessoas de outras origens sociais e isso ajuda na construção do ser como parte da sociedade. Ainda assim, se houver controle e padrão mínimo a ser seguido, sou a favor”.
A empresária Mileine Navarro, mãe de dois filhos em idade escolar, é taxativa: “Eu não gosto. Acho a socialização, principalmente até os 11, 12 anos, fundamental para desenvolvimento da criança. Tão importante como o aprendizado. Pode ser que eu não enxergue algo, mas, para mim, isso é regredir às cavernas. Vivi isso na pele por dois anos com meu filho mais velho. E outro ponto é exatamente a dinâmica necessária para entreter a geração computador”.
Ensino Domiciliar no Mundo
Estados Unidos, Áustria, Austrália, Portugal, Rússia, Itália, Nova Zelândia, Bélgica, Canadá, França e Noruega são alguns dos países que adotaram o sistema. Cada um mantém regras segundo suas próprias culturas e condições; a maioria exige uma espécie de avaliação anual.
Já na Alemanha e Suécia, o ED é considerado crime, assim como no Brasil. Os Estados Unidos são exemplo claro de alteração no sistema de Ensino. Até 2015, eram mais dois milhões de alunos seguindo o ED, segundo o National Home Education Research Institute - NHERI.
Tanto quanto ocorre hoje no Brasil, familiares americanos enfrentaram críticas e problemas seriíssimos com a Justiça no início do empreendimento, nos anos 80. O ED foi regulamentado em terras norte-americanas na década seguinte.
Em Portugal, não obstante regular, nem mesmo o órgão responsável por Educação Pública conhecia em 2015 números de alcance dos adeptos. Dos países que adotaram o sistema, a França apresenta-se em avanço constante.
Realidade Brasileira
O Artigo 246 do Código Penal prevê implicações sérias para pais ou responsáveis que não inserem as crianças nas Redes de Ensino.
A obrigatoriedade de Ensino se dá entre 04 e 17 anos, determinada por vários mecanismos de controle:
∙ Lei de Diretrizes e Bases – LDB
∙ Artigo 1.634 do Código Civil Brasileiro, pelo qual se sabe que é competência dos pais providenciar ingresso acadêmico dos filhos a partir dos 04 anos de idade
∙ Artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que mostra ser incumbência parental ou tutelar o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores
∙ O Artigo 55 também do ECA obriga pais ou responsáveis a matricular seus filhos/tutelados na rede regular de Ensino
Órgão Brasileiro Apoiador
A Associação Nacional de Educação Domiciliar – Aned trabalha como fonte apoiadora, instrutora e orientadora dos rumos da estratégia no Brasil. Não tem fins lucrativos e detém associados por todo o território nacional.
Segundo seus idealizadores, os motivos que levam famílias a optar pelo ED são dos mais variados: ideológicos, geográficos, religiosos, profissionais etc. Mas o que há em comum é a convicção de que são os pais os verdadeiros responsáveis pela educação filial em todos os sentidos e áreas.
Ainda segundo a Aned, o país tem ganhado cada vez mais adeptos. Por volta de três mil famílias são encontradas no banco de dados da Associação. Entretanto, parece haver consenso no fato de que há muito mais, pois o receio de retaliações sociais ou legais ainda é grande.
Casos Brasileiros
Há quatro anos, Davi e Jônatas receberam prêmio dos organizadores da Campus Party americana: viagem e participação com tudo pago. O que os diferencia dos demais brasileiros amantes da festa tecnológica é que ambos os irmãos mineiros, então respectivamente com 17 e 18 anos, tinham já abandonado o sistema de aprendizado tradicional e se adaptado ao domiciliar. Ainda assim, chegaram à frente de sete mil concorrentes na disputa pelo prêmio.
Contudo, deixaram os pais no país em situação difícil: Cleber e Bernadeth Nunes foram condenados pela Justiça de Vargem Alegre a rematricular os filhos na escola. O casal ignorou a decisão e pagou multa; recorreram, tiveram pedido de recurso negado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais e foram condenados por crime de abandono intelectual.
Fonte: folha.uol.
Em 2010, em Contagem-MG, Lorena Dias tinha 11 anos quando pediu aos pais para sair da escola por conta de assédio bullying sofrido. Isso, aliado à preocupação dos pais com greves e violência, contribuiu para a decisão paterna.
Inicialmente, tanto ela quanto o irmão, Guilherme, estranharam profundamente o processo. Os pais se mostraram muito mais rígidos que os professores.
Contudo, a liberdade de horário e escolha de atividades suplantaram os problemas.
Para compensar a falta de contato social, os pais incentivam encontros quinzenais com amigos e colegas. Para associar ao ambiente escolar, as aulas mantinham características de responsabilidade e seriedade.
Legislação: PL 3179/2012
Lincoln Portela é deputado federal por MG e pai de um também político de 35 anos e de uma advogada de 27 anos, que foram assíduos no sistema tradicional de Ensino. O deputado criou o PL 3179/12, que trata das questões do Ensino Domiciliar, para regulamentação da prática.
“Comecei a aprender a ler e a escrever com a minha avó. É claro que passei pela escola formal, mas tive o incentivo do aprendizado em casa”, diz Portela. Para ele, o ED incentiva o aprendizado a partir do autodidatismo.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.